Há canções que não pertencem ao tempo — pertencem ao vento. Clube da Esquina nº 2, de Lô Borges e Milton Nascimento, é uma dessas raras melodias em que o instante se abre para o eterno. Nela, o moço é estrada, a estrada é sonho, e o sonho, por sua vez, é o próprio sentido de existir. Na morte recente de Lô Borges, em 2 de novembro de 2025, em Belo Horizonte, não se cala apenas uma voz, mas uma forma de ver o mundo: a crença suave e persistente de que a juventude, a arte e o afeto são forças que desafiam a finitude. Sua música permanece como um rio que nunca deixa de correr — mesmo quando o leito parece vazio.
O Clube da Esquina nasceu na Minas Gerais dos anos 1960, nas esquinas de Belo Horizonte, quando a juventude ainda acreditava que podia mudar o mundo através de um violão e de uma amizade. Era menos um grupo e mais uma irmandade: Milton Nascimento, Lô e Márcio Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso e tantos outros que, entre cafés, ladeiras e tardes de ensaio, inventaram um novo idioma sonoro. Fundiram a Bossa Nova, o rock dos Beatles, o jazz, o folclore mineiro e a música erudita num sopro de transcendência. Não havia manifesto — havia comunhão. E dessa comunhão nasceu uma das expressões mais puras da alma brasileira: uma música que, mesmo mineira, parecia falar ao cosmos.
Clube da Esquina nº 2 é uma canção que reflete, em seu âmago, o espírito do movimento. Sua estrutura lírica é quase zen: versos curtos, repetitivos, nos quais a simplicidade se converte em profundidade. A palavra “moço” inaugura a jornada. O moço não é um personagem, é um símbolo — o caminhar humano em busca de si, movido pela ventania, sem olhar para trás. “Porque se chamava estrada / Viagem de ventania”: a existência é caminho e sopro, impulso e incerteza. Lô e Milton transformam a passagem do tempo num convite à leveza. A juventude não é apenas uma fase da vida — é um modo de olhar o mundo sem medo do horizonte.
Há, porém, uma dor subterrânea na melodia. O verso “em meio a tantos gases lacrimogênios” ressoa como uma ferida política: o Brasil vivia sob a ditadura militar. E ainda assim, “os sonhos não envelhecem”. A canção não nega o sofrimento, mas o transcende. É um canto de resistência silenciosa, de serenidade diante do caos. Lô Borges faz da melodia um abrigo — onde a ternura é a forma mais radical de coragem.
Na sua segunda parte, o poema se torna reflexão pura: “Basta contar compasso / Basta contar consigo / Que a chama não tem pavio”. O tempo é ritmo, e o ritmo é autoconhecimento. A chama que não tem pavio é o espírito — fogo que arde sem precisar de matéria. É uma imagem profundamente filosófica, quase mística, na qual a música assume o papel de linguagem metafísica. “De tudo se faz canção”: eis o credo de Lô Borges. Tudo, até o silêncio, é música quando o coração está desperto.
A canção termina como começou: em movimento. O “rio de asfalto e gente” é a cidade — o fluxo das multidões, a modernidade que entorna e transborda. Mas há um eco poético nisso: o rio, em Minas, é também metáfora da alma — daquilo que corre por dentro e nunca cessa. A palavra “gente”, repetida quase como um mantra, sugere a fusão do eu com o todo. A melodia, nesse ponto, não apenas descreve — ela encarna o movimento da vida.
Em Clube da Esquina nº 2, a filosofia encontra a canção, e a canção encontra a eternidade. É a poesia do instante em que o humano e o divino se tocam. Lô Borges sempre foi o mais silencioso dos grandes — aquele que falava pouco, mas dizia tudo com acordes. Sua morte em Belo Horizonte fecha um ciclo, mas o eco de sua obra abre outro. O moço da esquina se foi, mas a estrada permanece.
O Clube da Esquina, mais que um movimento musical, foi uma visão de mundo — um lugar onde se acreditava que a amizade podia ser harmonia, que o som podia ser ética, que a arte podia ser oração. E Clube da Esquina nº 2 é o seu evangelho mais delicado: uma canção que ensina a caminhar sem pavio, a resistir sem ódio, a sonhar sem medo.
Hoje, ao lembrarmos de Lô Borges, podemos ouvir em silêncio aquela voz que dizia: “E sonhos não envelhecem.”
E é verdade — não envelhecem. Porque, como os rios de Minas, os sonhos de Lô seguem correndo, invisíveis e infinitos, nas curvas do tempo.










