Quase 40% das mulheres que fizeram um aborto autorizado por lei no Brasil entre janeiro de 2021 e fevereiro deste ano realizaram o procedimento fora do município onde moravam, segundo levantamento feito pelo portal g1 com dados do Sistema Único de Saúde (SUS) obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI).

A distância representa uma entre diversas dificuldade que mulheres brasileiras enfrentam para obter o abortamento no país. Nesta semana, o Ministério da Saúde publicou uma cartilha na qual afirma que “não existe aborto ‘legal’” e defendeu que os casos permitidos no Brasil sejam submetidos a “investigação policial”. Pesquisa do instituto Datafolha divulgada na última sexta-feira (3) mostrou que 65% dos brasileiros consideram que a lei que permite aborto em casos de estupro, anencefalia e risco de vida à gestante deve permanecer como está ou ser ampliada para mais situações.

Foram 1.823 procedimentos de aborto autorizado por lei no Brasil no período. Destes, 711 ocorreram em uma cidade diferente da que a paciente morava. Deste total, 25 mulheres saíram dos seus estados para fazer o abortamento, que no Brasil é permitido por lei em três casos:

  • gravidez decorrente de estupro;
  • risco à vida da gestante;
  • anencefalia, ou seja, quando o feto tem malformação no cérebro.

Seis dessas 25 mulheres realizaram o procedimento a mais de mil quilômetros de onde moram. Dados do Ministério da Saúde (MS), obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram que uma moradora de Santa Maria das Barreiras, no interior do Pará, realizou um procedimento de interrupção da gravidez na capital do estado, Belém, que fica a mais de 18 horas de distância, de carro. Para especialistas, a distância pode impedir o acesso ao aborto legal ou torná-lo mais complexo.

Deslocamento custa até R$ 1,2 mil

Os deslocamentos em transporte público das mulheres que fazem aborto legal foram estimados em até quatro dias e meio, e os custos do trajeto em até R$ 1.218, segundo uma pesquisa da doutoranda em Saúde Coletiva na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Marina Jacobs. Em um estudo ainda não publicado, ela analisou cerca de 16 mil registros de aborto que ocorreram entre 2010 e 2019, dos quais quase 15% foram fora do município de residência.

Jacobs afirma que a distância que as mulheres precisam percorrer para acessar esse serviço pode impedir o acesso delas ao aborto seguro.

“Conforme a distância aumenta e esse tipo de barreira vai ficando maior, as pessoas que conseguem superar esse tipo de barreira são as menos vulneráveis”, explica.

Para a médica sanitarista Tânia di Giacomo do Lago, pesquisadora do Instituto de Saúde (IS) da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, parte desses deslocamentos ocorre porque municípios de pequeno porte não têm estrutura de internação hospitalar, que é necessária para realizar o aborto legal por conta da medicação disponível para o procedimento no país.

Ela destaca, no entanto, que mesmo em cidades de médio e grande porte, onde há estrutura de internação, muitas mulheres não conseguem acesso ao serviço.

“É preciso não só aumentar a oferta de serviços de saúde que fazem aborto legal pelo país, mas aumentar com qualidade, pra você ter um respaldo para a mulher”, explica Lago.

Especialistas também apontam que, mesmo quando o município registra a realização de algum aborto legal no período pesquisado, não há garantias de que o sistema de saúde local execute o procedimento com regularidade. Além disso, nem todos os estabelecimentos com oferta atendem às três causas previstas em lei.

“Pode ser que o município tenha feito o aborto em uma situação de risco para a a vida da gestante, mas que aquele mesmo município não ofereça aborto em caso de violência sexual”, afirma Jacobs.

No Brasil, o aborto legal é permitido desde 1940. De acordo com a pesquisa Serviço de Aborto Legal no Brasil, que analisou o período de 2013 a 2015, mais de 90% dos abortos legais no país ocorrem em gestações resultantes de estupro. Apenas 5% dos O número de mulheres atendidas em todo o país pelo SUS em razão de abortos malsucedidos – tenham sido provocados ou espontâneos – foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas pela lei. De janeiro a junho, o SUS fez 1.024 abortos legais em todo o Brasil. No mesmo período, foram 80.948 curetagens e aspirações, processos necessários para limpeza do útero após um aborto incompleto.

Vítima outra vez

Como a maior parte das mulheres brasileiras que realiza um aborto legal foi vítima de estupro, a dificuldade em acessar o procedimento pode representar uma nova vitimização após a violência sexual, de acordo com especialistas ouvidas pelo g1.

“Muitas vezes a percepção da violência só ocorre quando elas já estão grávidas, especialmente em casos de estupro de vulnerável, de meninas muito novas”, relata a psicóloga Daniela Pedroso, que há 25 anos é especialista no atendimento a vítimas de violência sexual.

“É bastante difícil esse deslocamento [para realizar o aborto legal] porque, em geral, as mulheres vítimas de violência sexual chegam sozinhas. Elas vão meio que na cara e na coragem, e é muito custoso do ponto de vista psicológico não saber o que vão encontrar em relação ao acolhimento. Já é um ato de muita coragem”, explica Pedroso.

Para a pesquisadora Marina Jacobs, a dificuldade para acessar o serviço de aborto legal pode levar a procedimentos de maior risco à saúde da gestante, mortes, traumas e problemas de planejamento familiar.

“[Devido às dificuldades de acesso] Essas mulheres vão gestar o fruto da violência que sofreram, ou vão acessar o procedimento de forma clandestina e insegura, ou vão ter uma gestação de risco, talvez morrer por uma gestação de risco. E isso também pode levar a termo uma gestação de feto anencéfalo, o que pode ser tanto um problema para a saúde física quanto para a saúde mental da pessoa gestante e da família”, afirma a pesquisadora.

Coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual do Hospital das Clínicas de Uberlândia (Nuavidas/UFU), Helena Paro destaca que a distância entre a residência da mulher e o serviço de saúde pode atrasar o procedimento, tornando-o mais complexo.

“O risco, que é pequeno, vai aumentando a cada semana, porque o procedimento vai complicando. A maioria dos hospitais não oferece cirurgia depois de 14 semanas, então ela vai ter que induzir, tem que ficar internada, tem que colocar remédio para expulsar o feto, como se fosse um trabalho de parto. A coisa vai ficando mais dolorosa, mais demorada, e onera o sistema, onera a própria paciente, porque cada dia fora de casa é um dia sem trabalho, é um dia sem ter quem deixar os filhos”, explica Paro.

Fonte: G1

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