“Foi o suficiente para eles cortarem a cabeça, não será suficiente
por um século para que outro igual surja”, disse o matemático
ítalo-francês Joseph-Louis Lagrange.
Ele lamentava a decapitação de
Antoine Laurent Lavoisier, que havia mudado para sempre a prática e os
conceitos da química, forjando um sistema que daria ordem ao conhecimento
caótico da alquimia.
Lagrange e Lavoisier viveram — como
Charles Dickens escreveu — naqueles que “eram
os melhores tempos, eram os piores tempos, era o século da loucura, era o
século da razão”. Na verdade, era o século 18, o do Iluminismo e do
“terror”. Na França, foi o momento da Revolução que mudou o país e o
mundo.
E, naqueles tempos, apesar de suas
realizações, Lavoisier tinha muita gente contra ele, além de um inimigo
bastante poderoso.
Um retrato
Muitas obras de arte retratam momentos. Nesse caso, elas também
mostraram um mundo que estava prestes a desaparecer.
Produzida pelo artista mais ilustre
da França à época, Jacques-Louis David, em 1788, uma pintura mostra Lavoisier
olhando com adoração para sua brilhante mulher, Marie Anne Pierrette
Paulze-Lavoisier.
Em apenas alguns anos, David, um defensor da Revolução Francesa e amigo de Maximilien Robespierre (um dos líderes da Revolução Francesa), tinha controle quase completo das artes na França. E Antoine Lavoisier estava morto.
Marie Anne estava falida, mas
recuperou os livros confiscados do marido, editou suas anotações adicionais e
as publicou uma década após sua morte.
Casamento às pressas
Antoine e Marie Anne se conheceram quando ela tinha apenas 13 anos e seu pai, Jacques Paulze, precisava casar a filha rapidamente.
Uma baronesa insistia em fazer dela a esposa de seu irmão de 50 anos.
Marie se recusou a se casar com
aquele “tolo e ogro”, nas palavras dela. Mas, na França da época, era
difícil negar os desejos de uma baronesa.
Só havia uma solução: ela não poderia
se casar com o velho nobre se já estivesse casada com outro homem.
Jacques Paulze tinha a pessoa certa
em mente: um jovem bonito e brilhante que trabalhava em sua empresa. Ele se
chamava Antoine Lavoisier.
O jovem aceitou a proposta e, em uma grande cerimônia em dezembro de 1771, o vínculo foi formalizado.
‘Aquele jovem bonito e brilhante’
Lavoisier já era razoavelmente
conhecido na França, porque, além de um coletor de impostos, tinha estudado
química.
Naquela época, a ciência era quase
sempre uma ocupação para homens que, embora tivessem outros empregos, tinham
tempo e recursos disponíveis para se dedicar a ela.
Por seu trabalho em geologia e seu plano de fornecer luz às grandes cidades, Lavoisier havia sido eleito membro da Academia de Ciências da França em 1768, quando tinha apenas 25 anos.
Na década de 1770, ele fez seu
trabalho mais brilhante, descobrindo como materiais, entre eles a madeira, são
queimados.
Na época, acreditava-se que, ao
pegarem fogo, esses materiais liberavam uma substância misteriosa chamada
flogisto (do grego flogistós: ‘inflamável’).
Dizia-se que essa era a razão pela qual um tronco diminuía de tamanho quando pegava fogo: o flogisto era liberado. Pensava-se que os materiais que queimavam facilmente eram ricos nessa substância.
Não é bem assim que funciona, disse
Lavoisier.
Por um lado, quando os metais
esquentam, eles não se tornam mais leves, mas mais pesados, disse ele. E ele
argumentou que isso acontecia porque eles são combinados com um componente do
ar: um gás que ele chamou de oxigênio.
Na década de 1780, Lavoisier usou sua teoria do oxigênio para construir uma estrutura completamente nova para a química.
Ele esclareceu o que é um elemento
químico: uma substância, disse ele, que não pode ser reduzida a nada mais
simples.
Ele compilou uma lista de nada menos
que 33 desses elementos e desenvolveu métodos para dividir compostos químicos
em seus elementos componentes e calcular as proporções relativas de cada um.
Além disso, ele introduziu um moderno
sistema de nomes que permite que as equações químicas sejam escritas em uma
linguagem universal que seja entendida em todo o mundo.
Lavoisier apresentou tudo isso em um
livro de 1789, intitulado Traité Elementaire de Chimie (ou Tratado Elementar de
Química), publicação que lançou as bases para o futuro desta área da ciência.
Ele é considerado o pai da química moderna e dá nome à conhecida Lei de Lavoisier, ou Lei da Conservação das Massas, princípio de que nada se perde ou se cria (o conceito já havia sido apresentado antes por outro cientista, o russo Mikhail Lomonosov, mas o texto deste não repercutiu).
Marie e Antoine
Marie Paulze e Lavoisier pareciam formar um casal feliz desde o início do casamento. Embora isso não fosse tão comum na época, eles gostavam um do outro.
Ela entrou com o marido no
laboratório, aprendeu química, anotou resultados de experimentos e fez esboços
de seu laboratório e equipamentos.
Suas habilidades eram inestimáveis
para Lavoisier, especialmente sua capacidade de ler e traduzir, além de
entender e analisar textos científicos escritos em inglês.
Ele não foi o único a tentar resolver
a química do ar e da combustão: havia outros atrás dessa “pista”
envolvendo o oxigênio.
Um deles era seu amigo, o químico
inglês Joseph Priestley, que o encontrou primeiro e até isolou o oxigênio puro,
que é misturado com nitrogênio no ar, mas pode ser separado pelo aquecimento de
certos produtos químicos.
Priestley notou que as chamas
queimavam mais intensamente em oxigênio puro. Mas, na época, ele acreditava que
o efeito era causado pelo ar deflogisticado — ou seja, ar havia ficado sem o
chamado flogisto e tentava recuperá-lo de alguma substância em chamas.
Existem historiadores que argumentam,
porém, que o crédito é do químico sueco Carl Scheele, que identificou o
oxigênio vários anos antes de Priestley. Infelizmente, uma carta que ele enviou
a Lavoisier descrevendo seu trabalho nunca chegou e seu relatório científico
foi esquecido por dois anos em uma gráfica.
O fato é que o ambicioso Lavoisier queria estar à frente e precisava saber o que seus rivais estavam fazendo. No entanto, ele mal conseguia ler em inglês; portanto, sua esposa tinha que traduzir documentos nesse idioma para poder varrer o flogisto da teoria química e substituí-lo por sua teoria do oxigênio.
A história que passou por eles
Foi então que a Revolução Francesa estourou, e aristocratas e cobradores de impostos foram considerados inimigos do povo.
Lavoisier era as duas coisas e não se salvou, apesar de ser um cientista admirado e, em sua outra profissão, um dos poucos liberais que tentaram agressivamente reformar o sistema tributário.
Segundo vários historiadores,
Lavoisier foi denunciado pelo político revolucionário Jean-Paul Marat.
Marat nasceu no mesmo ano que o químico, estudou medicina e viajou pela Europa.
Na década de 1770, ele era um médico conhecido, que vivia em Londres e frequentava a aristocracia, embora já fosse politicamente ativo; em 1774, ele publicou Les Chaînes de l’esclavages (As Correntes da Escravatura, em tradução livre), atacando o despotismo.
Em 1777, Marat foi para a França e
atuou como médico do conde de Artis, irmão do rei Luís 16, que foi coroado como
rei Carlos 10º.
Praticar medicina com a aristocracia
era lucrativo, mas Marat renunciou ao cargo para se tornar um cientista.
O gérmen do
ressentimento
Confiante de que a Academia de Ciências de Paris, da qual Lavoisier era um membro proeminente, o reconheceria como um cientista de vanguarda, Jean-Paul Marat apresentou um ensaio sobre a luz, acompanhado por numerosas experiências, muitas das quais destinadas a invalidar teorias ópticas sobre a cor de Isaac Newton.
A Academia Francesa nomeou uma
comissão de cientistas, que incluía Lavoisier e também o então embaixador
americano Benjamin Franklin, para investigar o assunto.
Nove meses depois, a comissão
concluiu que os experimentos “não provavam o que o autor imaginava que
eles provavam” e decidiu que “eles não os consideravam adequados para
a aprovação ou consentimento da Academia”.
As esperanças de Marat de ser aceito
como um membro da academia desapareceram e foram substituídas por um profundo
ressentimento contra a entidade e, particularmente, contra Lavoisier, o mais
vocal dos membros da comissão.
Mas ele não pôde fazer muita coisa
até a Revolução estourar e se tornar um movimento poderoso.
Foi então que Marat voltou-se contra
Lavoisier, fazendo circular folhetos denunciando sua ciência, seu passado e
todas as suas atividades.
Marat adotou a filosofia de “se você não pode juntar-se a eles, melhor derrotá-los”. Ele acabou liderando um movimento para dissolver a Academia de Ciências.
Pouco a pouco, colocou seu partido e
parte da população contra Lavoisier, no momento em que a Revolução começou a se
tornar seriamente perigosa.
Em 13 de julho de 1793, Marat recebeu
a vista de uma mulher chamada Charlotte Corday, que alegava ter informações
confidenciais sobre um grupo de girondinos em fuga, o que despertou o interesse
de Marat.
Os girondinos eram um ramo moderado
de revolucionários que eram a favor da dissolução da monarquia, mas contra a
liderança violenta que a Revolução havia assumido nas mãos dos jacobinos, como
Marat e Robespierre.
À época, um problema de saúde que
causava extremo desconforto fez com que Marat improvisasse um escritório na
banheira, onde o incômodo diminuía.
Ao final da conversa, Corday, uma defensora secreta dos girondinos, inesperadamente pegou uma faca e a enterrou no coração de Marat.
Dizem que suas últimas palavras
foram: “A moi, ma chère amie!” ou “Para mim, minha querida
amiga!”
Corday foi presa e, apesar de ter se
defendido dizendo que matara “um homem para salvar cem mil”, ela foi
condenada e morreu na guilhotina aos 24 anos.
Como amigo íntimo de Marat e companheiro jacobino, o pintor Jacques-Louis David foi encarregado de planejar o funeral e pintar a cena de sua morte.
O assassinato de Marat fez dele um mártir por algum tempo. Seus amigos e
aliados mantiveram vivo seu rancor contra Lavoisier e o prenderam.
Enquanto era mantido em cativeiro, Lavoisier escreveu a um primo: “Tive uma carreira decentemente longa e, acima de tudo, feliz. Acho que minha memória será acompanhada por alguns arrependimentos e, talvez, alguma glória. O que mais alguém pode querer? Esse assunto provavelmente me salvará dos inconvenientes da velhice. Eu vou morrer com boa saúde”.
Em 1793, o químico foi considerado traidor do Estado e condenado à morte. Em 8 de maio de 1794, Antoine Lavoisier foi levado à guilhotina.
Embora seja uma história apócrifa, conta-se que, quando as realizações científicas de Lavoisier foram apresentadas como uma razão para perdoá-lo, o chefe da corte respondeu: “A República não precisa de sábios”.
Fonte: BBC News ||