Quando era criança, a estudante de Teologia Erika Grace Piva Archanjo, hoje com 31 anos, tropeçava e caía com frequência, acidentes que ela e sua família atribuíam a algum problema ortopédico. Ela nunca foi ao médico por causa disso. Só fez isso, aos 25 anos, depois que sentiu fraqueza nas pernas e percebeu que para se levantar, após se abaixar, precisava apoiar as mãos no chão.

O diagnóstico só veio um ano depois, quando seu primeiro filho tinha um ano: Erika sofria de paraparesia espástica tropical, que, ao longo do tempo, vai paralisando e incapacitando as pessoas.

É uma doença pouco conhecida, causada por um vírus também pouco famoso, o vírus linfotrópico de células-T humanas (HTLV-1, da sigla em inglês para human T-cell lymphotropic vírus), do qual o Brasil é um dos campeões mundiais em número absoluto de portadores, com pelo menos 800 mil pessoas infectadas – número que pode chegar a 2,5 milhões, dependendo da fonte. No mundo, estima-se algo entre 10 e 15 milhões de portadores.

Ele faz parte da família dos retrovírus humanos (Retroviridae) – foi o primeiro desse grupo a ser descoberto, em 1980 – a mesma do seu primo mais popular, o HIV, causador da aids.

“Ele se integra no nosso DNA e pode ser transmitido”, explica Jorge Casseb, médico do Ambulatório de HTLV e professor do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP).

Sintomas e consequências

Normalmente, o vírus fica em repouso, integrado ao DNA dos seus portadores. Mas em 5 a 10% das pessoas infectadas, ele pode causar duas doenças: a própria mielopatia associada ao HTLV-1 ou paraparesia espástica tropical (HAM/TSP, do nome em inglês HTLV-1-associated mielopathy/tropical spastic paraparesis), e a leucemia linfoma de células T do adulto (ATLL – adult T-cell leukemia/lymphoma), um tipo de câncer do sangue bastante agressivo, que leva o paciente à morte em dois anos.

“Com o tempo, o paciente pode ficar incapacitado de andar”, diz Adele Caterino de Araujo, pesquisadora científica do Centro de Imunologia, do Instituto Adolfo Lutz.

“Ao longo do tempo, podem surgir sintomas como lombalgia (dor lombar), fadiga, disfunção urinária e sexual (disfunção erétil, perda da libido), cãibras, constipação intestinal, mialgia (dor muscular), além de uveítes (inflamação nos olhos), dermatites e de ordem emocional, como ansiedade e depressão.”

Erika sabe bem do que Adele está falando.

“Tive uma fase de incontinência e, por isso, mal saia de casa e quando o fazia tomava um remédio, que me ajudava, mas me deixava ‘grogue'”, conta.

“Depois, iniciei um tratamento com a pulsoterapia [terapia baseada em doses elevadas de corticoides por via endovenosa, durante um curto período de tempo]. Fazia três vezes por mês, indo e voltando do hospital. Não se sabe o que é pior, se as dores incontroláveis que o HTLV causa ou a reação ao remédio.”

Mas não é só isso.

“Além da fraqueza, incontinência urinária e dores, o lado emocional fica extremante fragilizado, muito choro, muita tristeza, muita raiva”, relata Erika. “Eu particularmente fiquei descontrolada, eu precisava achar um culpado para esse mal. Briguei com meu pai, pois ele e minha mãe usavam drogas e contraíram aids (ela morreu há 24 anos), afinal ele era coautor desse ‘crime’, já que foi deles que devo ter pego o HTLV-1. Além disso, senti medo de perder meu marido, afinal quem ficaria com uma louca em cadeira de rodas? As pessoas de um modo geral me irritavam profundamente, fiquei revoltada e arrogante.”

Segundo Adele, o HTLV-1 age infectando preferencialmente os linfócitos T CD4+ (principais células do sistema imunológico) e nelas pode permanecer inserido em seu DNA na forma de provírus (estado latente em que se encontra o RNA do retrovírus após ter sido incorporado ao DNA da célula hospedeira).

“Ele necessita de contato célula a célula para a sua propagação, de tal modo que a transmissão por partículas livres no sangue é praticamente inexistente ou ineficiente”, explica. “Como a carga proviral de HTLV-1 é baixa, a proliferação das células infectadas é quem promove a disseminação do vírus no organismo.”

Sintomas que demoram a se manifestar

O que pode demorar a ocorrer. O tempo médio estimado entre a infecção por HTLV-1 e o desenvolvimento de doença é longo e geralmente ocorre por volta da quarta década de vida, podendo o indivíduo infectado permanecer apenas como portador assintomático.

“Há relatos de que cerca de 5% dos infectados desenvolvem doenças, mas este dado parece estar subestimado, uma vez que mais de 20% dos portadores no Brasil desenvolvem algum quadro associado a ele”, ressalva Adele.

Apesar desses números e dos problemas que causa às pessoas que desenvolvem doenças, o HTLV-1 recebe pouca atenção no Brasil e mesmo no mundo. Os médicos e pesquisadores que trabalham com ele reclamam da falta de estrutura e da ausência de ações específicas contra o vírus. Não existe um programa nacional para tentar controlá-lo ou erradicá-lo.

“Não há cura para as doenças que causa, mas elas não têm tido a devida atenção, e sequer constam da lista de doenças consideradas negligenciadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS)”, diz Adele.

O fato de a grande maioria dos pacientes ser assintomática é uma das possíveis razões pelas quais o HTLV-1 não recebe a atenção devida. Como evolutivamente falando, é um vírus antigo, ele está bem adaptado e a maioria das pessoas não desenvolve as complicações mais graves, pois o próprio sistema imunológico do paciente o controla.

Na maioria dos casos, os portadores nem percebem nem sabem que estão infectados.

“Eles têm uma dificuldade de subir escada, uma dor, mas quem vai no médico por causa disso?”, indaga Casseb. “Quando alguém vai, faz raio-X, tomografia, ressonância magnética e geralmente os resultados são normais. Acaba acontecendo que a pessoa passa sete, às vezes até dez anos, para descobrir a causa desses sintomas.”

Desconhecimento também no atendimento

O desconhecimento do HTLV-1 por parte dos próprios profissionais da saúde é outro problema que contribui para o largo intervalo entre o início dos sintomas e o diagnóstico. Como exemplo, Casseb relata o caso de uma paciente do interior de São Paulo que passou por 29 médicos até encontrar um que tinha sido residente no Ambulatório de HTLV do Hospital Emílio Ribas e estava familiarizado com o vírus.

“Ele pediu a sorologia [exame de laboratório realizado para comprovar a presença de anticorpos no sangue], que custa uns 3 reais, e deu positivo”, conta. “Mas se você não pensar e não pedir o exame, não tem como identificar a infecção causada por ele.”

Com o objetivo de informar e mobilizar a sociedade e o poder público para o significado da infecção ocasionada pelo primeiro retrovírus humano descrito, a Associação Internacional de Retrovirologia (IRVA, na sigla em inglês de International Retrovirology Association) instituiu 10 de novembro como o Dia Mundial do HTLV.

Além disso, em maio deste ano médicos, pesquisadores e representantes de pacientes de todo o mundo enviaram uma carta aberta à OMS solicitando a criação de estratégias para erradicar o vírus, entre as quais mais testagens e maior divulgação dele e das doenças a ele associadas, tanto entre profissionais da saúde como entre o público em geral.

Não é algo impossível nem tão difícil de se conseguir, pois as formas de transmissão do vírus são bem conhecidas. São três: parenteral (por transfusão sanguínea e compartilhamento de seringas e agulhas contaminadas durante o uso de drogas injetáveis lícitas e ilícitas), sexual (durante o sexo sem preservativo) e vertical (pelo aleitamento materno prolongado, durante a gestação e no momento do parto).

“Atualmente, a primeira via de disseminação diminuiu consideravelmente no Brasil, pois desde 1993 tornou-se obrigatória a sorologia para HTLV em todos os bancos de sangue do país”, informa Adele.

A importância das campanhas

Um exemplo de estratégia bem sucedida contra a transmissão do vírus vem da cidade de Nagasaki, no Japão. Lá foram adotadas medidas de testar as gestantes e orientar as mães portadoras do HTLV-1 a não amamentar os seus filhos, ou a fazê-lo por períodos mais curtos – não mais do que seis meses. Com isso, foi possível reduzir a prevalência da doença de 20,3% para 2,5% em 20 anos.

 

Fonte: G1||

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