Reunidas na quadra de uma escola estadual, dezenas de crianças entre seis e 11 anos aprendem o que é um predador: alguém que se aproxima sorrateiramente, parece inofensivo, mas está pronto para atacar. Em vez de uma aula de biologia, trata-se de uma palestra da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) sobre abuso sexual infantojuvenil. Saber distinguir as partes do corpo que podem ou não ser tocadas pode protegê-las de uma violência que também acontece nas salas de aula. Dados do Painel de Violência da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) indicam que as escolas são o terceiro local com maior número de notificações de crimes sexuais, atrás apenas de residências e de vias públicas. De janeiro de 2024 até 12 de maio deste ano, foram 420 registros compulsórios do tipo — o que equivale à média de uma criança ou adolescente solicitando atendimento por dia. Em 2025, os números tiveram uma redução, foram 64 vítimas até 12 de maio, o que ainda mostra um cenário alarmante de um abuso a cada dois dias no Estado.

A notificação de violência sexual é obrigatória em todo o país. Ou seja, os serviços de saúde devem comunicar os casos à vigilância em até 24 horas, mesmo sem o consentimento da família. Quando o abuso acontece dentro das escolas, os registros que chegam às unidades de saúde de Minas Gerais revelam um perfil ainda mais vulnerável: de janeiro de 2024 até 12 de maio deste ano, 136 vítimas tinham entre 1 e 4 anos de idade, o que representa quase 33% das ocorrências em instituições de ensino, segundo o painel da SES-MG. Neste Maio Laranja, mês dedicado à conscientização sobre a exploração sexual infantojuvenil, a Polícia Civil visita escolas e creches para alertar sobre os sinais de abuso, além de orientar sobre formas de prevenção e denúncia.

“É evidente que a maioria dos casos ocorre dentro da própria casa, com o agressor sendo alguém de confiança da criança. Mas esse não é o único ambiente em que abusos acontecem. A polícia quer alcançar o maior número possível de locais de risco — inclusive a escola, onde crianças e adolescentes passam boa parte do dia e também podem estar vulneráveis a esse tipo de violação”, pondera a delegada-chefe da Divisão Especializada em Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente (Dopcad), Danúbia Quadros.

Segundo ela, um dos principais desafios no enfrentamento ao abuso de crianças — especialmente as menores de 4 anos — é que, muitas vezes, os pequenos ainda não sabem se comunicar, nem conseguem identificar a agressão. “Não dá para confiar apenas nos números, porque eles não refletem a realidade. Muitas vezes, quando a criança começa a apresentar sinais de abuso, ela ainda nem sabe falar ou compreender o que está acontecendo. Nesses casos, a subnotificação é ainda maior. Um dos nossos focos de atenção é justamente esse: ensinar a reconhecer os sinais de violência”, afirma a delegada-chefe.

Uma das palestras acompanhadas pela reportagem aconteceu na Escola Estadual Ordem e Progresso, na região Oeste de Belo Horizonte, quando o delegado da Polícia Civil Diego Lopes apresentou às crianças o “semáforo do toque”: as partes do corpo que podem ou não ser tocadas por outras pessoas nas cores verde, amarelo e vermelho. Lopes afirma que é comum surgirem denúncias logo após as apresentações. “Pela natureza do crime, há situações que ocorrem dentro das próprias escolas. Por isso, é tão importante essa conversa — tanto com as crianças menores quanto com os adolescentes. Em alguns casos, também abordamos a questão do adolescente infrator e das medidas socioeducativas”, diz.

Para o vice-diretor da Escola Estadual Ordem e Progresso, Fabrício Rodrigo da Silva, a iniciativa faz diferença nas relações entre os adolescentes a longo prazo. “Eles estão em uma fase de muitas descobertas, na transição entre a infância e a adolescência, e alguns temas ainda não são tão compreendidos. Por isso, essa palestra do toque — que ensina a diferenciar o que é brincadeira do que é sério — é muito importante. Depois da apresentação, eles próprios passam a se vigiar, de forma muito autêntica. E isso é muito bacana”, diz. Segundo o gestor, na unidade, funcionários e professores estão sempre atentos aos comportamentos dos estudantes para evitar qualquer tipo de violência.

Na cidade de Cantagalo, na região do Rio Doce, uma criança de 8 anos denunciou ter sido abusada por um familiar logo após uma palestra do Maio Laranja, em 14 de maio. O homem, de 30, foi preso em seguida. “Esse caso demonstra o papel decisivo da conscientização e da escuta qualificada”, disse o delegado responsável pelo caso, Marceleandro Clementino da Silva. Em Nova Lima, um exemplo de abuso dentro da escola vem se desdobrando há quase dois anos: a família de uma adolescente denuncia que ela foi estuprada durante uma aula de hip-hop em uma escola municipal, em agosto de 2023, quando tinha 10 anos. O suspeito teria se aproveitado do momento em que ela descansava em um colchonete. O professor foi indiciado pela Polícia Civil em setembro de 2024, mas segue solto. Ele chegou a descumprir uma medida protetiva indo, em abril deste ano, duas vezes à casa da vítima. A PCMG informou que a denúncia de descumprimento da medida foi analisada e concluída sem indiciamento, uma vez que os elementos de informação “não demonstraram a ocorrência do crime“. O TJMG, por sua vez, informou que não pode dar detalhes sobre o processo, que envolve menor de idade.

 

Fonte: Isabela Abalen e Lucas Gomes/ O Tempo

 

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