Além de lidar com o avanço do coronavírus, alguns municípios mineiros estão vivendo um novo fenômeno que tem lançado mais um desafio para as gestões: o crescimento da população em situação de rua.

Sem dados concretos que comprovem, o aumento dessa população nas ruas tem se limitado à percepção e ao avanço no número de atendidos em programas sociais do governo nas cidades mineiras.

Em pelo menos três municípios do estado com menos de 100 mil habitantes, esse fenômeno foi percebido pela reportagem de O Tempo – em Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte, e em Mariana e Pará de Minas, na região central do estado.

Em Lagoa Santa, a percepção do aumento da população de rua é nítida para o poder público. De acordo com a assistente social Ângela Maria de Souza, do Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua da cidade, em 2019, eram servidas sete refeições diárias na hora do almoço; hoje, o número já alcança 20.

Após a pandemia e com o fechamento do comércio, o local também passou a servir janta. “Além do jantar, também estamos oferecendo alimentação no fim de semana. Antes da pandemia, as refeições eram de segunda a sexta-feira e, nesse momento de pandemia, também fornecemos aos finais de semana e feriados”, explica.

Ainda de acordo com a assistente social, muitos moradores de rua chegam ao município e permanecem. Eles ainda relatam que estão migrando para cidades menores para fugir do risco de contaminação pelo coronavírus. “Eles relatam que estão migrando de municípios maiores para municípios menores pensando no risco de contaminação. Eles acreditam que nas cidades maiores o risco é maior”, conclui Souza.

Abrigos ficam lotados

O número de atendimentos a moradores de rua também aumentou em Pará de Minas, na região central do estado. De acordo com a coordenadora do Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop) da cidade, Nádia Paula Nogueira, antes da pandemia cerca de 15 pessoas eram atendidas diariamente; agora, em média, o número de pessoas dobrou e subiu para 30.

“A gente percebeu um número grande de migrantes em busca de trabalho. Eles chegam, procuram assistência e vão embora. Teve um aumento de pessoas também envolvidas com conflito familiar. Pessoas que saem de casa e vão para a rua. O aumento impactou de tal forma que o açúcar desse mês não deu, as passagens fornecidas a eles não deram, e o abrigo, com capacidade para nove pessoas, está lotado”, explica Nogueira.

Dados mascaram a realidade

A percepção do aumento da população de rua em cidades mineiras também refletiu no crescimento de cadastros dessas pessoas no CadÚnico, sistema do Ministério da Cidadania utilizado para a inclusão de pessoas de baixa renda em programas sociais.

No entanto, para os especialistas, o crescimento na base de dados ainda é tímido e preocupa, pois, não condiz com a realidade observada, criando uma lacuna grave no desenvolvimento das políticas públicas de assistência social. 

De acordo com levantamento do projeto Polos da Cidadania, da UFMG, com base no CadÚnico, em março do ano passado, no início da pandemia da Covid-19, o total de pessoas cadastradas no sistema do governo era de 18.095. Em janeiro deste ano, o número de cadastro aumentou para apenas 18.334, o que é preocupante, segundo o coordenador do projeto, André Luiz Freitas. 

“Temos no estado hoje 18.334 pessoas no CadÚnico. O que nós ficamos nos perguntando é: onde estão as outras pessoas? Porque, visivelmente, houve um aumento significativo de pessoas que passaram a viver nas ruas com a pandemia, mas não teve uma alta tão significativa do número de cadastros dessas pessoas. Com isso, podemos ter mais pessoas deixadas de lado nesse acesso aos programas sociais”, questiona.

Carência de dados

Ainda de acordo com Freitas, faltam dados mais específicos sobre a população em situação de rua no país para se ter um “raio-x completo” da situação dessas pessoas.

A sugestão do pesquisador é realizar um censo nacional específico para saber, de fato, quantas pessoas em situação de rua existem no Brasil. Segundo Freitas, em Minas, com base nos dados do CadÚnico, um total de 11 cidades concentram cerca de 70% de toda a população de rua no estado. 

Em Minas, as cidades com maior número de pessoas em situação de rua são: BH, Betim, Contagem, Sete Lagoas, Juiz de Fora, Poços de Caldas, Uberaba, Uberlândia, Montes Claros, Ipatinga e Governador Valadares.

“Essas cidades maiores tendem a se organizar um pouco melhor para atendimento a essa população, apesar de nem sempre isso acontecer. O fenômeno do deslocamento da população em situação de rua ainda é pouco compreendido pelas políticas públicas”, explica André Luiz Freitas, coordenador do Polos da Cidadania (UFMG).

Racismo estrutural fica evidente

Entre as 11 cidades mineiras que mais concentram pessoas em situação de rua, apenas em Poços de Caldas, no Sul de Minas, o número de pessoas que se declaram negras e pardas é menor que as que dizem ser brancas. De acordo com os dados do CadÚnico do Ministério da Cidadania, dos 345 moradores de rua cadastrados na cidade, 179 se declaram negros ou pardos; já os brancos somam 164.

Em Belo Horizonte, dos 8.619 moradores de rua cadastrados no CadÚnico, 7.215 pessoas se declaram negras ou pardas, e 1.345 se declaram brancas. Para o coordenador do projeto Polos de Cidadania da UFMG, André Luiz Freitas, o cenário evidencia a existência de um racismo estrutural.

“Esse é mais um ponto que precisa ser observado. Nós estamos falando do agravamento da situação em uma população historicamente marginalizada, historicamente fragilizada. Falar de direitos da população de rua também significa também defender os direitos de vidas negras que importam”, define o pesquisador da UFMG.

Fonte: O Tempo

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