Com acesso escasso à alimentação, higiene pessoal e sem local adequado para dormir, venezuelanos que esperam por regularização no Brasil ficam o dia nas ruas de Pacaraima, cidade na fronteira, à própria sorte. Famílias inteiras passam a noite em papelões, se protegem da chuva em calçadas e comem, por dias seguidos, apenas pão com mortadela, enquanto a água potável também é limitada.

As famílias chegam constantemente no município por rotas clandestinas entre os dois países e se organizam em longas filas para a regularização migratória. Há relatos de migrantes aguardando semanas pelos documentos. O fluxo intenso é registrado desde que o governo federal liberou a passagem de estrangeiros em situação de vulnerabilidade no dia 24 de junho, há dois meses.

A Operação Acolhida, força-tarefa do Exército que atende migrantes e refugiados venezuelanos que entram no país, oferece abrigo noturno para os migrantes recém-chegados no alojamento BV-8.

Desde a liberação da passagem de estrangeiros, o número de atendimentos diários da operação passou de 80 para 300 no Posto de Recepção e Identificação na fronteira.

O “número está de acordo com a capacidade máxima de atendimento proporcionada pelos meios disponíveis, sem colocar em risco a saúde dos venezuelanos e dos nacionais que trabalham nesses postos, haja vista que a pandemia ainda não acabou e é preciso evitar aglomerações desnecessárias de pessoas”, cita a Acolhida.

O governo federal não informou o número de venezuelanos que tem entrado na fronteira por Pacaraima. O portal G1 procurou o Ministério da Justiça, responsável pela Polícia Federal, a PF, a Casa Civil da presidência e o Exército, mas não obteve resposta. A Prefeitura de Pacaraima disse não ter os números porque os migrantes têm entrado por rotas clandestinas.

A Operação Acolhida, por sua vez, informou que o dado é de competência da PF. “Cabe a este órgão (PF) a solicitação de informações sobre estimativa de chegada de venezuelanos por rotas clandestinas.”

Já a Embaixada da Venezuela no Brasil, representada por María Teresa Belandria, informou que a média de venezuelanos que entram no país varia de 300 a 800 por dia. O órgão disse chegou a essa estimativa após passar uma semana acompanhando o fluxo migratório pelas vias clandestinas. A embaixada –reconhecida pelo governo brasileiro– representa o gabinete de Juan Guaidó, político oposicionista que se proclamou presidente venezuelano em 2019 durante impasse político no país.

A força-tarefa, de acordo com relatos dos migrantes, oferece alimento apenas à noite e um limite de água de 5 litros por pessoa. No restante do dia, os migrantes precisam conseguir por conta própria maneiras de saciar a fome e a sede. A operação, por sua vez, nega que haja essa limitação e diz que há “bebedouros com água à vontade; jantar e café da manhã.”

Dia sem comer

Manuel Guillen, de 59 anos, morava em Puerto Ordaz, no estado de Bolívar, ao nordeste da Venezuela. Está em Pacaraima há 14 dias esperando pela documentação para seguir viagem pelo no Brasil. Embora esteja todo esse período na rua, a falta de comida durante o dia é a que mais o preocupa. Manuel conta que ele, a filha e o neto almoçam apenas pão com mortadela desde o dia que chegaram. pois não têm dinheiro para comprar outro tipo de alimento.

“Durante o dia, o almoço nós mesmos pagamos e só temos condição de conseguir pão com mortadela. Tem sido assim nesses 14 dias”, conta o migrante.

À noite, a prioridade da Acolhida é fornecer comida a idosos, mulheres e crianças, disse ele.

Já a jovem Rosilene Garcia, de 25 anos, veio de Ciudad Guayana, no estado de Bolívar, junto com a irmã e os quatro filhos pequenos. Ela aguardava a regularização havia quatro dias e relatou estar com “muita fome.”

“Temos fome. Estamos há quatro dias aqui fora dormindo e não temos comida. Tenho quatro filhos, temos muita fome. Não temos um real sequer, temos fome. Comemos apenas uma vez na noite. O restante do dia não comemos nada, aqui não oferecem almoço ao meio-dia, nem água”, conta.

Rosilene, que aguardava na fila em cima de um colchonete junto com os filhos, relatou, por volta das 11h, que ainda não tinha comido nada. A noite anterior ela havia dormido na rua com as crianças.

“A janta que eles [Operação Acolhida] oferecem é apenas para quem dorme no abrigo. Quando acaba o espaço lá, eles fecham e quem sobrou dorme na rua e precisa conseguir a própria comida. Tá sendo assim desde que chegamos”, afirmou, enquanto esperava na fila.

Manuel Guillen também se queixou da falta de higiene nas filas. A Acolhida instalou 13 banheiros químicos em paralelo à fila. Segundo o migrante, o neto, de 4 anos, teve uma infecção por conta da sujeira no local.

Na fila, o mau cheiro e a sujeira dos banheiros químicos eram evidentes. Os banheiros foram instalados em locais próximos de onde crianças brincam e famílias dormem. A administradora Estefânia Guillen, de 28 anos, filha de Manuel, se queixou do limite de água diário oferecido pela Operação Acolhida: ela disse que são apenas de 5 litros por pessoas.

Locais para dormir

Militares da Acolhida encarregados de organizar as filas informaram que, aos que ainda não conseguiram se regularizar, a operação separa 600 locais para dormitório no BV-8. Eles entram no alojamento às 18h e saem às 6h, momento em que os migrantes retornam à fila da regularização migratória.

Famílias dormem em calçadas para se abrigar das chuvas — Foto: Caíque Rodrigues/G1 RR

Foto: Caíque Rodrigues/G1 RR

É dada preferência aos idosos, famílias e mulheres na hora de decidir quem dormirá no abrigo. O restante dorme ao relento, reunido em calçadas para proteger-se das chuvas na região.

Luiz Salazar, de 18 anos, veio de Barcelona, no estado de Anzoátegui, e está há cinco dias aguardando a documentação. Luiz conta que não foi incluído entre as prioridades para passar a noite no abrigo e, por isso, todo esse tempo dormiu no chão.

“Desde que eu cheguei, durmo na rua, na calçada. No chão, em um cantinho. Quando não chove, eu durmo na rua mesmo, mas para me proteger da chuva, fico na calçada”, relata o jovem.

Contexto

Desde o final de 2015, Roraima passou a ser o destino de venezuelanos em fuga da crise política, econômica e social do regime de Nicolás Maduro. Em 2018, a situação se agravou: migrantes chegavam no Brasil e, sem perspectivas, moravam nas ruas e encaravam a pé a rota da fome para chegar a Boa Vista.

Em meio ao descontrole, a Operação Acolhida foi criada para organizar o fluxo migratório, mas, três anos depois, as cenas agora vistas em Pacaraima – de muitos migrantes nas ruas – relembram o estopim da crise humanitária em Roraima, o estado com a menor população e o menor PIB do país.

Fonte: G1

COMPATILHAR: