Quando falamos sobre assassinos, é comum usarmos as palavras “monstros” ou “perversos” para qualificá-los, como se eles fossem seres de outra espécie, absolutamente diferentes de nós. No entanto, todos somos capazes de matar, segundo Julia Shaw, uma psicóloga criminal alemã que vive em Londres e que passou anos explorando os cantos mais sombrios da mente humana.

Doutora em Psicologia pela Universidade de British Columbia, no Canadá, e atualmente pesquisadora na London College University, Shaw é autora do livro “Making Evil” (Fazendo o mal, em tradução livre) que traz um estudo detalhado sobre nossa infinita capacidade de ferir – e mostra como você é pior do que você imagina.

Confira a entrevista à BBC News Mundo:

BBC News: Nós, humanos, gostamos de matar. De fato, somos superpredadores, matamos mais animais e em maior número do que qualquer outra espécie. Estamos programados para matar?

Julia Shaw: Os seres humanos sempre tiveram que matar para sobreviver: nossos corpos matam bactérias que ameaçam nossas vidas, nós sempre matamos plantas e animais para a alimentação e, certamente, desde os tempos antigos matamos quando nos sentimos ameaçados ou temos algo a ganhar. Por incrível que pareça, matar é essencial para a condição humana.

BBC News: Todos nós temos um assassino dentro de nós e somos capazes de matar em um determinado momento? Ou seja, vivemos cercados por muitos assassinos em potencial?

Julia Shaw: Para todos nós, apenas uma má decisão nos separa de prejudicar os outros de forma trágica. Um momento de loucura em nossos carros, uma faca que desliza, um empurrão.

Isso não significa que é provável que todos nós possamos, igualmente, agir de maneira horrível, mas significa que todos devemos assumir que somos capazes de causar um grande dano aos outros.

E quando começamos a entender o que pode nos levar a esses caminhos ruins, podemos começar a entender por que os outros os escolheram. Podemos começar a quebrar o “mal” em seus componentes, separar cada peça e estudá-la.

No meu livro, trato de vários estudos sobre esse tema. Em um deles, a maioria dos participantes (homens e mulheres) confessou que tinha fantasias sobre o assassinato – matar pessoas como seus colegas ou mesmo seus entes queridos.

Esses pensamentos são normais e, felizmente, trazê-los para a realidade não é. De fato, pensar nessas coisas pode nos ajudar a tomar decisões melhores, porque, uma vez que tenhamos pensado no horror em nossas mentes, é provável que decidamos que realmente não queremos as consequências terríveis.

Muitas vezes vemos que aqueles que acabam cometendo assassinatos não fantasiam com isso, como fazem os bandidos do cinema. Em vez disso, muitas vezes é o resultado de uma briga que vai longe demais. Na maioria das vezes, o assassinato não é o resultado de um planejamento meticuloso por um sádico ou psicopata. É muito mais provável que seja uma decisão ruim da qual a pessoa se arrepende imediatamente e que a persegue pelo resto da vida.

BBC News: Se matar é da nossa natureza, por que consideramos o assassinato de um ser humano nas mãos de outro como algo terrível, monstruoso e contrário à natureza?

Julia Shaw: Nós não veríamos dessa maneira se fôssemos honestos com nós mesmos e se nos aprofundássemos no assunto. Nós não vemos todos os assassinatos como ruins.

Quando alguém mata para se defender, quando nossos soldados matam as tropas “inimigas”, quando os combatentes enfrentam o fascismo, não vemos essas pessoas como más. Podemos até chamá-los de heróis.

O que as pessoas concordam em se qualificar como mal é o assassinato de pessoas consideradas “inocentes” e, particularmente, quando esse ato parece motivado pelo sadismo. Mas esse tipo de assassinato é muito raro – tão raro que vive quase exclusivamente em nossa imaginação e em filmes.

BBC News: Em seu livro, você revela que muitos assassinos são “pessoas normais”, pessoas com aspecto agradável…
Julia Shaw: Nós temos a imagem de que pessoas que julgamos ter aspecto ruim são más, o que é conhecido como “o efeito demoníaco”. Mas precisamos aprender a usar mais nossos cérebros para avaliar se há evidências de que uma pessoa em particular é realmente perigosa para nós. Isso pode nos ajudar a combater problemas como a xenofobia e ajudar a parar com a estigmatização de pessoas com deficiências físicas ou mentais.

Um estudo mostra que temos todos os tipos de suposições sobre a aparência daqueles que rotulamos como “mal”. No meu livro, dedico um capítulo inteiro ao que é horripilante. E o que a pesquisa mostra é que coisas como dedos longos, risadas estranhas, falar demais sobre determinados assuntos ou estar perto demais são frequentemente percebidas como “assustadoras”.

O problema é que essas suposições são enviesadas. Estudos mostram que aqueles que percebemos que têm doenças mentais, ou cicatrizes no rosto ou deficiências visíveis – ou que são de uma parte diferente do mundo e têm costumes diferentes ou um aspecto diferente do nosso – são mais propensos a disparar nossos radares como algo “assustador”, embora não sejam realmente uma ameaça para nós.

BBC News: Subestimamos nossa capacidade de prejudicar os outros?

Julia Shaw: Pensamos em nós mesmos como “bons”, e isso torna muito difícil percebermos nossa própria capacidade de causar danos. Precisamos urgentemente nos conhecer melhor.

BBC News: Bem e mal são categorias absolutas? Existe maldade e bondade dentro de todos nós?
Julia Shaw: Eu acredito que o mal só existe em nossos medos. Acredito que não devemos usar o termo “maldoso” para descrever os seres humanos ou seus atos, porque isso faz parecer que eles nunca poderiam ser compreendidos, que eles são quase sobrenaturais.

O mal também é um rótulo que usamos quase que universalmente para desumanizar os outros e, quando fazemos isso, podemos facilmente nos tornar os monstros que tememos.

Em vez de chamar pessoas ou atos de maldosos, por que não descrever o ato, suas consequências e, idealmente, tentar entender por que isso aconteceu? Somente se trabalharmos para entender por que as pessoas causam grande dano podemos começar a evitá-lo.

BBC News: Até o pior assassino tem alguma bondade por dentro?

Julia Shaw: Tem uma citação maravilhosa sobre a qual venho pensando, de Alexander Soljenítsin, um escritor que sobreviveu às horrendas condições do gulag (campo de concentração) soviético, sobre os guardas da prisão que trabalhavam nos campos.

“A linha que divide o bem e o mal atravessa o coração de cada ser humano. E quem está disposto a destruir um pedaço do seu próprio coração?”

BBC News: Normalmente classificamos assassinos como pessoas sem empatia. Mas, ao mesmo tempo, não sentimos empatia pelos assassinos – talvez para tentar deixar bem claro que somos absolutamente diferentes deles?
Julia Shaw: Sim, é bem hipócrita. Mas nós, humanos, somos ótimos em hipocrisia. Certamente, a maioria das pessoas que matam têm empatia. Eles podem não ter em relação a suas vítimas.

Geralmente, temos mais empatia com as vítimas do que com os agressores, o que facilita a construção de diferenças artificiais entre nós, “as pessoas boas”, e “as pessoas más”.

E não gostamos de pensar que “nós” podemos nos tornar as pessoas que tememos ou odiamos. Podemos ter medo de nós mesmos.

No entanto, como cientista, acho esse lado fascinante. E acredito que a popularidade de filmes e livros de crimes de ficção ou reais mostra que muitas pessoas também estão intrigadas com pessoas que fazem coisas terríveis.

BBC News: Existem vários estudos que mostram como quase todos nós podemos ser sádicos, e no seu livro você cita alguns deles. É normal ser sádico?

Julia Shaw: No que alguns cientistas chamam de “sadismo do dia a dia”, os participantes de um experimento foram solicitados a prejudicar outras pessoas por meio de vários métodos, como administrar ruídos muito altos, matar insetos ou fazer outras coisas prejudiciais.

A pesquisa revelou que, enquanto muitos de nós estariam dispostos a prejudicar uma vítima inocente, apenas aqueles que têm uma pontuação mais alta no sadismo o fazem quando percebem que a outra pessoa não se defende.

Nossas mentes estão programadas para ter prazer com o sofrimento dos outros, como quando sentimos alegria quando um colega que odiamos falha em algo importante, mas felizmente só acontece às vezes.

BBC News: Em seu livro, você menciona alguns comportamentos considerados como agressões passivas (como não retornar o telefonema para uma pessoa, não responder às suas mensagens ou não falar com ela) que, no entanto, a maioria das pessoas realiza em maior ou menor extensão. Por que fazemos essas coisas?

Julia Shaw: Acredito que um dos tipos mais interessantes de agressão, e certamente o mais comum, envolve machucar alguém por não responder: agressão passiva.

Com os amigos, podemos intencionalmente ignorar uma mensagem de texto de desculpas. Com nossos pais, podemos nos atrasar para frustrá-los e, com os namorados ou namoradas, podemos nos recusar a fazer sexo para puni-los pelo mau comportamento que percebemos que tiveram. Por que fazemos essas coisas?

Uma razão pode ser que esse tipo de comportamento seja fácil de negar. Se eles descobrirem você e acusarem você de se comportar passivamente de forma agressiva em uma discussão, você sempre pode dizer: “O que? Eu não fiz nada”. Podemos dizer a nós mesmos que, como é agressão devido à inação em vez de ação, não somos culpados.

No entanto, na realidade, a agressão passiva pode ser tão prejudicial para as relações e o bem-estar psicológico dos outros quanto outros tipos de agressão.

A agressão é um comportamento humano normal: devemos ter cuidado apenas para controlar a raiva ou a frustração para que possamos minimizar o dano o máximo possível.

BBC News: Várias investigações mostram como os assassinos têm cérebros diferentes. Em seu livro, ele menciona o caso de James Fallon. Poderia explicar isso?

Julia Shaw: Existem pesquisas fascinantes, por meio de neuroimagem nos cérebros das pessoas que assassinaram e das pessoas que são psicopatas. Os estudos mostram de forma reiterada que provavelmente existem algumas diferenças ​​entre os cérebros dessas pessoas e aqueles que não prejudicam os outros.

No entanto, muitas vezes não está claro o que veio primeiro: o cérebro ou o mau comportamento. E é ainda mais complicado, porque mesmo aqueles com o cérebro de psicopata podem nunca ter um mau comportamento.

Um exemplo fascinante de pesquisa é o Dr. Fallon, que estuda os cérebros dos psicopatas. Depois de examinar os cérebros de muitos dos participantes, ele segurou em suas mãos a imagem de um cérebro claramente patológico. E, no final, descobriu-se que esse cérebro era dele.

Fallon classificou ele mesmo como “psicopata pró-social”, alguém que tem dificuldade em sentir empatia, mas se comporta de maneira socialmente aceitável. Acontece que nem todos os psicopatas são iguais, e certamente nem todos os psicopatas são criminosos.

Mesmo alguém nascido com o cérebro de um assassino poderia nunca matar ninguém, embora seja mais provável que ele faça isso.

BBC News: A maioria dos assassinos só mata uma vez. É justo chamá-los de assassinos pelo resto de suas vidas?

Julia Shaw: Eu acho que devemos ser muito cuidadosos ao julgar as pessoas e fazer isso com base em toda a sua complexidade, e não apenas com base no pior que elas fizeram. Devemos ter muito cuidado quando usamos termos como “assassino”, para que não nos esqueçamos da humanidade das pessoas.

Penso que a razão pela qual precisamos conversar de maneira muito mais estruturada sobre isso é que, se não discutirmos, nunca poderemos impedir que coisas terríveis aconteçam.

 

Fonte: G1||

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