Quando a sirene da ambulância soou na porta do motorista Jorge Geraldo Borges, 60, ele, que assistia à novela de tarde, prestes a emendar em cochilo pós-almoço, surpreendeu-se. “Vieram me vacinar contra o coronavírus em casa. Imagina se eu tivesse dormindo e não acordasse? Não ia me perdoar, porque a gente que mora em lugar longe de tudo é o último a receber qualquer coisa”, conta ele, que vive em Rio Doce, na Zona da Mata mineira. 

Na pacata cidade de 2.623 habitantes, distante 115 km de Belo Horizonte, todos os adultos já receberam a primeira dose do aguardado imunizante contra a Covid-19, capaz de fazer a pandemia recuar. Muitos, em casa, assim como Borges. Somando essa estratégia ao fato de que à comunidade é formada, sobretudo, por ribeirinhos (grupo prioritário na vacinação), Rio Doce ostenta atualmente a marca de 100% de sua população adulta imunizada ao menos com a 1ª dose.

Proporcionalmente, é a cidade com a maior aplicação de doses em Minas Gerais, segundo dados informados pelas prefeituras e consolidados pela Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (pode haver diferenças em relação aos boletins municipais devido à morosidade no lançamento do conteúdo no sistema unificado, e os percentuais são obtidos sobre a população geral, segundo o IBGE, e não sobre o público-alvo, acima de 18 anos). 

“Normal não tá ainda, tem que usar máscara, mas só de poder deixar os vizinhos entrarem em casa um pouquinho agora me dá uma alegria que acho que eu nunca senti antes na minha vida, porque a gente que mora no interior gosta de ficar com a porta de casa aberta para receber as pessoas. Eu nem sabia que era possível ser feliz de novo”, desabafa a dona de casa Lucimar Cesario, 46. 

Pelas ruas da cidade que tem como ponto principal de encontro a praça Helder de Aquino e a Paróquia de Santo Antônio, em uma tarde de segunda-feira calorenta, não é difícil encontrar pessoas que compartilham do sentimento. “Se deixar, minha mãe quer ir no supermercado três vezes ao dia. Tudo desculpa para sair de casa”, revela a dona de casa Cristina Borges, 45, o segredo da mãe Maria da Conceição, 72. “Eu fiquei trancada esse tempo todo, estou descobrindo o que é viver de novo”, comemora a aposentada. 

A expectativa do município é que toda a população adulta da cidade complete o esquema vacinal em setembro, quando maioria dos moradores receberão a segunda dose da AstraZeneca. Sem casos de internação e óbitos há quase quatro meses, a cidade tem atualmente apenas um infectado.

“Chegamos a ter 89 contaminados antes da vacinação em massa. Eram feitos 26 testes por dia, o que é muito para uma cidade pequena como a nossa. Com dois meses de imunização, não tínhamos mais contaminação praticamente”, explica o secretário municipal de saúde da cidade, Rodrigo Leite, que prova na prática que todas as vacinas são efetivas.

“A maior parte da população foi vacinada com AstraZeneca e com a Coronavac. A vacinação aqui na cidade foi a prova de que a única solução possível para a pandemia é a imunização”, destaca o secretário, que recebeu o pedido de pelo menos 20 pessoas de fora do município para se imunizar na cidade.

“Começamos a ter o receio daqui virar turismo de vacina, mas, como temos cadastro de todos os moradores, só se vacina quem é cadastrado na nossa unidade de saúde. Optamos também por vacinar as pessoas em casa, porque é uma forma de dar informação para aqueles que por acaso tivessem algum receio”, completa Leite. 

Esse foi o caso da dona de casa Antonia Fabri, 33. Por temor dos efeitos colaterais, ela quase desistiu de se imunizar. “Eu e meu marido estávamos com medo, mas acabou que não tivemos nada e hoje, se eu pudesse voltar atrás, tinha me vacinado antes, porque eu voltei a ter a minha liberdade”, afirma. 

Liberdade essa que deu coragem a mais para a atendente Isabelle Nunes, 18, voltar a sonhar também com uma faculdade. “Fico mais tranquila em deixar minha família aqui e ir estudar em outro lugar agora. Já tinha desistido, porque a gente que é jovem nem tinha previsão de vacina, ainda mais a gente do interior. Eu sei que sou privilegiada em meio a tantos jovens”, admite. 

Cuidados 

Mesmo com toda população vacinada, os cuidados continuam em Rio Doce. Na Onda Vermelha do programa Minas Consciente, o comércio só pode funcionar até ás 20h no município.

O que falta para voltar ao normal, na opinião do aposentado Antônio José Nascimento, 65, que mesmo com as duas doses da vacina não abandona a máscara, é o retorno do tradicional forró do fim de semana. “Ver toda minha família vacinada me deixa 100% feliz, mas para morrer satisfeito só falta dançar agarradinho de novo e,  se não for pedir muito, o futebol também”, brinca ao lado da filha, Patrícia, 39. “Adora sair esse aí. Tem que ficar de olho e vigiando, porque mais feliz do que criança com brinquedo novo”. 

Análise dos resultados

Desde que começou a campanha de vacinação contra a Covid-19, vários países colocaram a meta de imunizar ao menos 70% população para que a pandemia fique controlada. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), este seria o primeiro patamar seguro para que a imunidade de rebanho fosse atingida e o vírus não se propagasse mais.

No dia 15 de junho, Nova York, nos Estados Unidos, por exemplo, celebrou com fogos de artifício o fato de ter se tornado o primeiro Estado do país a alcançar os 70% dos adultos imunizados com uma dose. Os epidemiologistas até concordam com a premissa dessa meta, mas alertam que é preciso considerar outros fatores para que a doença seja considerada segura. 

De acordo com o infectologista Adelino Melo, diretor científico do Hospital Felício Roxo, tão importante quanto os índices de vacinação, são as taxas de transmissão e de letalidade da doença. “É muito complexo falar em normalidade. O que vai permitir as estratégias de flexibilização e aberturas dos espaços e eventos e o não uso de máscara é considerar como essa vacinação interferiu nas taxas de transmissão e de ocupação dos leitos. Uma cidade segura é uma cidade que não tem novos casos e, consequentemente, não tem mortes. Não necessariamente uma cidade altamente vacinada vai ter bons índices”, analisou. 

Para o infectologista Leandro Curi, também é importante considerar a imunização com as duas doses da vacina. “Só a primeira dose não dá aval para uma liberação tranquila. A primeira dose estimula o organismo a produzir anticorpos, mas garantir a imunidade na primeira dose não é regra, precisa de outra dose (no caso das vacinas que assim pedem) para gerar resposta imunológica. A segunda dose dá o reforço de proteção e a segurança”, pontuou. 

O infectologista Estevão Urbano, membro do Comitê de Enfrentando à pandemia da Prefeitura de BH, ainda acrescenta que os cuidados mesmo após as duas doses são imprescindíveis. “Uma dose pode dar alguma resposta imunológica, mas é baixa. Mesmo quem já tomou a segunda dose tem que agir como se não estivesse protegido, é preciso manter uso de máscara e distanciamento, por exemplo”, completou.

Minientrevista

Rodrigo Leite
Secretário Municipal de Saúde 

Como a cidade conseguiu imunizar toda a população adulta neste tempo? Iniciamos a imunização no início do ano e, quando estávamos na faixa etária de 65 a 60 anos, por volta de março e abril, vimos que o município tinha um estudo que apontava que 53% da população era reconhecida como ribeirinha. Isso ajudou muito, porque a partir daí solicitamos mais vacinas para essa população, que é prioritária dentro do Plano Nacional de Imunizações. Com isso, aceleramos demais, porque as vacinas para os outros grupos, como professores e com comorbidades, continuaram vindo, e, muitas vezes, uma pessoa já havia sido contemplada em outro grupo. Outra questão que ajudou é que fomos nas casas das pessoas para vacinar, isso facilitou aquelas pessoas que tinham algum receio ou dificuldade em não querer tomar a vacina, além de evitar aglomeração. Como somos uma cidade pequena, conseguimos seguir nessa estratégia. Tivemos apenas três pessoas que não quiseram se vacinar por questões ideológicas e religiosas.

O que mudou após 70% dos moradores estarem vacinados na cidade? Isso foi muito fundamental para alternarmos o cenário epidemiológico do município. Em março, estávamos com 79 pessoas contaminados, o que é um número muito grande para o tamanho da cidade, e, já em maio, com avanço da imunização, conseguimos zerar esse número. Tivemos sete óbitos desde o início da pandemia e, desde que a vacinação se tornou em massa, não tivemos mais nenhum caso de internação e de óbito. Hoje, temos apenas um caso, que é de uma pessoa que trabalha em uma empresa na qual muitos funcionários não são da cidade.

Alguma medida restritiva caiu? A vida está mais normal? Não. Estamos na Onda Vermelha no Minas Consciente, as atividades funcionam até 20h. Talvez na próxima semana conseguimos ir para a amarela. O vírus é muito novo, tem muito a que ser descoberto, os cuidados continuam os mesmos. Tivemos casos de pessoas que se vacinaram e tiveram a doença, mas foram sintomas leves, o que só prova a importância da vacina. 

O que falta pra avançar na imunização com segunda dose? Qual a previsão para imunizar toda a população com as duas doses? Estamos com 30% da população imunizada com a segunda dose. O que acontece é que a maior parte da população daqui tomou a AstraZeneca e, como tem o prazo de 90 dias, estamos esperando este prazo. Na próxima semana, grande parte da população já vai tomar a D2.  Em setembro, esperamos conseguir concluir a vacinação de todos.  Pretendemos encaminhar para o Estado um pedido para antecipar a segunda dose, alguns locais já estão fazendo isso, porque o prazo da bula é de 4 a 12 semanas no caso da vacina da Fiocruz. Queremos isso porque vimos que o que tem dado certo é só a vacina.

A cidade avalia vacinar adolescentes, a população abaixo dos 18 anos? Temos por volta de 700 pessoas abaixo de 18 anos total ou entre 12 e 18. A gente quer imunizar o quanto antes nossos adolescentes e crianças, mas precisamos seguir o Plano Nacional de Imunizações. Acredito que, assim que a população de várias cidades forem vacinadas, essa faixa também será, acontecerá naturalmente como tem ocorrido em outros países quando houver disponibilidade de imunizantes. 

Qual é a maior preocupação pós pandemia? Tivemos sete óbitos aqui. Minha preocupação é a desestruturação familiar, foram pessoas que perderam familiares e perderam sua economia. A parte da saúde mental vai mudar muito e não temos política pública saúde suficiente para isso, vai ser preciso deixar mais robusta essas políticas. Muita coisa você recupera, a morte não tem como, é irreparável.

Fonte: O Tempo

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