Uma jovem de 24 anos que mora em Manaus e viu a mãe, idosa, com quem divide o apartamento, se vacinar contra a Covid-19, decidiu que também precisava se imunizar, mesmo que ainda não tivesse chegado sua vez na fila. O motivo: apesar de estar desempregada e quase não sair de casa, tinha receio de passar a doença para a mãe. Obesa, ela não se encaixava, porém, nos critérios de comorbidades, porque o seu IMC está abaixo de 40. Resolveu, então, procurar uma médica amiga da família, que fez um atestado falso.

A história, contada por Pietro Victor Nascimento, que não concordou com a atitude da amiga, é uma das inúmeras que têm circulado nas redes sociais.

“Ela me falou isso com uma naturalidade tão grande. Não bate um peso na consciência, né? As pessoas estão confundindo as coisas, estão se priorizando. Tem uma galera muito irresponsável. É tão absurdo que fico sem ter o que dizer. As pessoas não pensam nos outros, não têm empatia”, diz o empreendedor.

Nas últimas semanas, denúncias “informais” na internet têm se proliferado. Além das reclamações de familiares e amigos com casos similares, médicos também contam que têm recebido pedidos para laudos falsos de pacientes.

O médico que atende a esse tipo de pedido descumpre o artigo 80 do Código de Ética e pode responder a um processo ético-profissional, com penalidade máxima da cassação do registro profissional. A pessoa que solicita esse documento falso também pode ser punida.

O portal G1 procurou todos os 27 conselhos regionais de medicina para perguntar o número de denúncias quanto a isso. O resultado em todos os estados: nenhuma denúncia até agora. E, por isso, também não foram abertas sindicâncias nem processos éticos-profissionais.

Para o médico Gerson Salvador, especialista em infectologia e autor do livro “O pior médico do mundo”, os conselhos regionais deviam agir com mais proatividade.

“Os conselhos têm sido omissos. Na pandemia, a gente também tem visto médicos prescrevendo medicamentos ineficazes e potencialmente tóxicos. Os conselhos não têm nenhuma atitude para orientar práticas éticas das prescrições. Muito pelo contrário. Até relativiza de uma maneira corporativista”, afirma.

O médico também diz que tem ouvido com frequência relatos de colegas de profissão sobre pacientes sem comorbidades que pedem laudos falsos para furar a fila da vacinação da Covid-19. Para ele, trata-se de “uma atitude moralmente condenável, eticamente reprovável e que acaba tirando o lugar da fila de vacinação de quem foi considerado prioritário”.

Ele recomenda que as pessoas denunciem essas situações ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina. Para ele, o fato de os critérios de vacinação mudarem de acordo com o município gera uma confusão e também dificulta a fiscalização.

No Centro de São Paulo, a venda de falsos atestados para furar fila da vacinação ocorre à luz do dia em locais movimentados. O portal G1 flagrou a comercialização ilegal dos documentos, como mostra o vídeo abaixo.

Nesta quinta-feira (27), a Polícia Civil do Rio de Janeiro prendeu um médico dono de uma clínica por vender atestados de comorbidade falsos para furar a fila da vacinação da Covid-19. Os atestados eram vendidos por R$ 20 em Pilares, na Zona Norte da capital. No Recife, o MP também investiga alguns casos.

Punição a médico e paciente

O primeiro-secretário do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), o médico Angelo Vattimo, diz que é importante fazer campanhas de orientação sobre esse assunto e também propor discussões para inibir que pessoas tentem arranjar laudos falsos.

Ele reforça ainda que o laudo falso é vedado pelo Código de Ética e aponta que a atitude antiética não é só do médico, mas também do paciente que pede o documento.

Seis conselhos regionais (SP, GO, PI, PR, RJ e RO) informam ter emitido uma nota alertando sobre o risco de emitir falsos atestados para pessoas sem comorbidade.

Vattimo argumenta que não há registro de qualquer denúncia no estado porque há uma conivência entre quem recebe e quem emite o laudo falso. Além disso, ele diz que os atestados podem ser falsificados e não necessariamente têm participação de médicos.

“O atestado precisa chegar aqui [no conselho]. Não adianta falar. Precisa ter um elemento material. Quem tem o atestado é quem recebeu. E quem recebeu está incorrendo em crime, está se beneficiando. A única alternativa é se alguém roubar o atestado e trouxer aqui. E eu duvido que aconteça isso. Você não tem outro elemento. Você tem uma cumplicidade entre quem pegou o atestado e quem emitiu.”

“O médico não pode emitir um atestado que não expressa a realidade dos fatos. Por exemplo, emitir um atestado se o paciente não tem comorbidade, se não é um paciente que ele conhece. Isso é muito óbvio. É um risco grande. O risco está propiciando que o programa de vacinação seja fraudado porque cada vez que alguém toma vacina de maneira indevida tira a vacina de outro que deveria ter tomado de forma correta”, diz Vattimo.

Ele afirma ainda que, apesar de não haver denúncias no conselho, a Secretaria Estadual de Saúde forneceu ao Cremesp uma lista dos 100 registros médicos que mais emitiram laudos, exames e receitas para a vacinação de pessoas com comorbidades. Ele diz que o conselho deve investigar os dados para tentar identificar alguma fraude ou irregularidade. Caso positivo, o conselho pode abrir sindicância e processo ético-profissional para punir o médico.

“O sistema VaciVida do governo de São Paulo permite que as unidades de saúde insiram o CRM [número] do médico responsável pela emissão do laudo, receita médica ou atestado para validação da comorbidade. A medida é mais uma alternativa que visa frear tentativas de fraudes ou emissão de laudos indiscriminados, bem como apurar situações atípicas que possam acontecer neste período.”

Comorbidades ‘invisíveis’

Já a antropóloga Beatriz Klimeck, doutoranda em saúde coletiva e criadora do projeto “Qual Máscara?”, que divulga informações sobre a proteção contra a Covid-19, lembra que algumas comorbidades são “invisíveis”, como hipertensão e diabetes (ao contrário da obesidade mórbida, por exemplo), e que essas pessoas conseguem ter uma vida regular. Para ela, as pessoas não precisam se justificar nas redes sociais sobre quais comorbidades ou deficiências permitiram que elas se vacinassem.

“Há um número enorme de pessoas com comorbidade ou deficiência no Brasil, e boa parte delas não é possível de ser reconhecida visualmente. Essa ideia de que as pessoas têm que provar, têm que justificar só acontece porque a gente está numa situação em que a gente poderia estar vacinando toda a nossa população e não está por incompetências múltiplas.”

Para ela, é preciso tomar cuidado para que essa fiscalização do fura-fila não iniba quem tem direito de tomar a vacina e ainda não compareceu ao posto de saúde. Ela acredita que o tema tem sido superdimensionado e que a pressão da população deve focar na garantia de uma oferta maior de doses e também de vacinas contra a Covid-19.

“Essa ideia de fiscalização das redes sociais só acontece porque a gente está vivendo um momento de escassez de vacinas, que não deveria estar acontecendo. Então, sem dúvida, eu discordo frontalmente da ideia de que as pessoas têm que expor uma condição de saúde nas redes sociais para poder ter o direito de se vacinar se, segundo o Programa Nacional de Imunizações (PNI), segundo as regras, segundo os laudos verdadeiros, elas têm condições de se vacinar.”

Lei de Gérson

O presidente da Associação Médica Brasileira, Cesar Eduardo Fernandes, afirma que a vacinação não é uma questão individual, mas sim uma questão coletiva. Portanto, não basta que um indivíduo se vacine, mas a população. “Só estaremos seguros quando ao redor de 70% da população estiver vacinada e tivermos a diminuição da circulação do vírus. A vacinação é uma ação cidadã.”

Ele lembra ainda que há um motivo para a ordem de vacinação. “Temos que proteger os indivíduos com comorbidades, que têm mais chance de evoluir para casos graves e vir a óbito. Precisamos proteger as pessoas de maior risco. A vacinação começou pelos idosos, profissionais de saúde, profissionais mais expostos e mais vulneráveis”, diz.

“Fico aborrecido como qualquer cidadão brasileiro que algumas pessoas estejam usando a Lei de Gérson, lei de tirar vantagem em tudo. Já estamos numa situação tão caótica, tão trágica.”

Fonte: G1

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