Você tem dificuldades para entender as mudanças do mundo e como se encaixa nelas? Temas como “a crise do significado” ou “angústia existencial”, antes circunscritos a filósofos e sociólogos, agora são pop e motivam o interesse de milhões de pessoas. Há diferentes campos em busca de respostas às incertezas e inseguranças de hoje e os sonhos são a surpreendente área explorada por Sidarta Ribeiro, um dos neurocientistas brasileiros mais conhecidos.

Ele lançou recentemente o livro “O oráculo da noite – A história e a ciência do sonho” (Companhia das Letras), que relembra o tempo em que as interpretações das imagens vivenciadas durante o sono eram determinantes nas decisões de faraós e imperadores e examina o interesse atual sobre os mecanismos oníricos – bem diferente de boa parte do século 20, quando o tema era encarado com ceticismo pela comunidade científica.

O que você lerá na entrevista:

  • Sonho já foi importante para decisões de faraós e imperadores
  • Utilidade do sonho desaparece no mundo contemporâneo
  • Inconsciente se mexe durante o sono, organizando fragmentos de ideias que podem ajudar em problemas complexos e angustiantes
  • Pensar relação entre sonhos e a realidade ajuda na “simulação de futuro”
  • Sonho pode ser útil na encruzilhada: temos capacidade transformar, mas gigantesca incapacidade de imaginar e construir o futuro
  • Pesquisador sugere adotar um um “sonhário”, um caderno de anotações do que foi vivenciado durante o sono

Sidarta Ribeiro vai além e advoga no livro a retomada do sonho como uma fonte preciosa de insights para as nossas próprias vidas. “O sonho era um portal potencialmente revelador de verdades úteis. Nossos ancestrais sabiam, claro, que poderia ser enganador – essa percepção está nas primeiras descrições históricas sobre sonhos. Mas também havia essa sensação de que ele tinha a chave para alguns problemas. E isso desaparece no mundo contemporâneo”, afirma o neurocientista, que é vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em entrevista ao portal  G1.

“A acepção da palavra ‘sonho’ na sociedade atual se confunde com desejo. Um desejo aquisitivo, de consumo. É o ‘sonho da casa própria’, esse tipo de coisa”. E a figura do “sonhador” não é totalmente admirada: “É visto como uma pessoa pouco prática, que não passa da teoria”.

Interpretar sonhos não é tão simples como nos almanaques da banca da esquina, que cravam futuros do tipo “sonhar com água é sinal de gravidez a caminho”. Mas o caldo do inconsciente de fato se mexe durante o sono, organiza e consolida pedaços de ideias e de informação para, muitas vezes, desenrolar problemas complexos e angustiantes.

A tabela periódica dos elementos químicos, marco da história da ciência, nasceu de um cochilo do russo Dmitri Mendeleiev. De tão cansado trabalhando atrás de um conceito que catalogaria as partículas mais básicas da Terra, o químico “pescou” e, durante o sono, visualizou uma solução que não tinha conseguido desperto. “Mendeleiev estava aberto para isso. Embora faça pouco sentido lógico, o sonho continua a gerar ideias férteis para as pessoas, tanto no âmbito da ciência quanto no da criatividade artística”, conta Ribeiro.

Simulação do futuro

O neurocientista faz no livro uma ponte conciliatória entre saberes antigos e o que a ciência vem descobrindo sobre o cérebro. “Se você passa a acreditar que os sonhos têm capacidade de ser um oráculo, você começa
automaticamente a prestar muito mais atenção à relação entre os seus sonhos e a realidade. Você coloca em marcha um mecanismo de simulação de futuro”, afirma.

“Na prática o sonho tem a ver com a teoria de simulação de ameaças. Não apenas, mas tem mais a ver com ela. Se eu tenho um pesadelo com o perigo de ontem e se esse perigo continua existente no amanhã, o pesadelo começa a funcionar como uma memória que alerta para evitar aquele contexto.”

O livro argumenta que esse papel na organização das nossas memórias, com insights sobre um possível futuro, representou uma ferramenta eficiente para os mamíferos. (Imagine o sono da capivara agitado pelo medo de um ataque de jacaré à beira do rio.) E assim o sonho prevaleceu dentro da corrida evolucionária.

“Se não fosse tão eficiente como mecanismo, não teria emergido e se difundido tão amplamente. Meu argumento é que esse oráculo probabilístico fornece um ganho de conhecimento: quem sonha está aprendendo alguma coisa sobre o futuro.”

“Nós saímos das cavernas e chegamos aos computadores rápido demais” — Sidarta Ribeiro

E também significa encarar o mundo de uma nova maneira e, consequentemente, a construção de uma nova visão. O que pode soar poético e grandioso, mas não deixa de ser um processo químico-orgânico:

“Quando você cria novas sinapses [contatos químicos entre neurônios], você basicamente lança todo o sistema para o futuro. Porque, embora você esteja integrando sinapses a neurônios que já existem, as sinapses são novas. Elas vão surgir e conversar com as memórias que já existem, mas também vão codificar as memórias novas. Se o mundo não mudasse nunca, se ele fosse sempre igual, o cérebro poderia ficar com as mesmas memórias. Só que o mundo está mudando o tempo todo”, explica Ribeiro.

“Seu jeito de ver o mundo com as mesmas sinapses é um jeito velho, que só vai perceber o que quer. Já um sistema cheio de novas sinapses é capaz de encontrar uma coisa nova e aprendê-la.”

O neurocientista Sidarta Ribeiro, autor de “O oráculo da noite – a história e a ciência do sonho” — Foto: Walter Craveiro/Flip/Divulgação

É um processo fascinante que ajuda a explicar por que estar deprimido é estar preso ao passado: “O deprimido muitas vezes tem problemas de sono e queda da neurogênese [formação de novos neurônios no cérebro]. Então a pessoa rumina muito mais o passado do que imagina o futuro. Fica reverberando atividade elétrica em circuitos que representam memórias muitas vezes desagradáveis e a mente vai cada vez mais se fechando em torno disso”, complementa o neurocientista.

Caminho para sair de impasses

E ver as coisas de uma nova maneira pode ser um caminho para as crises política, ambiental e outras que angustiam a humanidade? Sidarta Ribeiro acredita que sim. “Acho que o sonho tem, sim, a ver com o problema.”

Ele percebe um descompasso entre capacidade de realização e incapacidade de enxergar o mundo sob um prisma diferente: “Nós saímos das cavernas e chegamos aos computadores rápido demais”.

“Nesse momento a gente vive uma encruzilhada: gigantesca capacidade para transformar, mas gigantesca incapacidade de imaginar e construir o futuro. E isso está acontecendo porque estamos naturalizando esses instintos mais competitivos e agressivos que foram selecionados há milhões de anos, e que hoje já não cabem mais”, afirma o neurocientista.

“As pressões de seleção que nortearam a evolução da nossa espécie tiveram a ver, desde o início da história, com a escassez. Na escassez foram selecionadas positivamente as pessoas capazes de tratar bem os familiares e amigos, as pessoas dentro do círculo de confiança, ao mesmo tempo em que tratavam mal quem estava de fora. E hoje a gente não consegue entender que já não existe mais ninguém do lado de fora. A acumulação de riqueza é muito maior do que a distribuição no capitalismo atual. Por que uma pessoa que tem US$ 5 bilhões almeja ganhar o sexto bilhão? Isso não faz nenhum sentido se você considerar que já não há mais escassez. Persiste patologicamente uma sensação paleolítica de que, se eu não tirar tudo de alguém, não estou cumprindo o meu papel no mundo.”

Para Ribeiro, o passo inicial para retomar o contato com os sonhos é começar um “sonhário”, um caderno de anotações do que foi vivenciado durante o sono. E conversar com pessoas próximas sobre o que foi sonhado. “A narrativa matinal do sonho aumentou a coesão do grupo. Hoje a gente está vivendo sem essa coesão.”

 

Fonte: G1 ||
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