Faz duas semanas que ser gay ou lésbica não é mais crime em Botsuana.

No dia 11 de junho, o país tornou-se o segundo no continente africano a descriminalizar, neste ano, a homossexualidade (o vizinho ao norte, Angola, foi o primeiro).

Trechos dos artigos 164, 165 e 167 do Código Penal botsuanês foram eliminados — e, junto com eles, a pena de até 7 anos de prisão prevista no texto.

“Essa foi uma vitória tão grande para todos nós da comunidade LGBT”, diz Carmelo Yoko, artista e fotógrafa que mora em Tonota, uma pequena vila perto de Francistown, a segunda maior cidade de Botsuana.

Desde então, diz Carmelo, tudo está mais ou menos como sempre foi: tranquilo. O país, de 2,25 milhões de habitantes, tem uma cultura pacífica — cenário diferente da vizinha África do Sul, dizem ativistas.

Uma das maiores mudanças é que a descriminalização deve vir como uma forte mensagem à comunidade de Botsuana de que gays e lésbicas não podem ser ridicularizados ou perseguidos: é nisso que acredita Caine Youngman, ativista de direitos humanos em Gaborone, capital de Botsuana.

Acessar serviços de saúde também deve ficar mais fácil para a população LGBT: em alguns casos, relata Youngman, profissionais abriam escrituras da Bíblia, ridicularizavam ou tinham medo de oferecer ajuda, por temerem perseguição por auxiliar essas pessoas a irem contra a lei.

Além de ter o acesso a esses serviços dificultado, o ativista explica que muitos LGBTs sofriam violência doméstica em silêncio ou aceitavam chantagens porque não podiam ir à polícia, já que estar em relações com uma pessoa do mesmo sexo era crime. Outros faltavam às aulas ou deixavam a escola por causa de bullying, tornavam-se um fardo para a família e acabavam sem ter para onde ir, voltando-se à prostituição.

O ativista pelos direitos humanos em Botsuana Caine Youngman. — Foto: Arquivo pessoal

“[A mudança] também é um recado de que, se você acredita que está certo, pode ir ao tribunal, e a justiça vai prevalecer. [A decisão] nos dá fé e esperança no sistema judicial de Botsuana”, diz Youngman, que é gay e trabalha na ONG Legabibo, voltada para os direitos de lésbicas, gays e bissexuais de Botsuana e que só foi legalizada definitivamente em 2016.

Herança colonial

Os artigos do código penal de Botsuana que criminalizavam a homossexualidade são herança colonial do país — que, entre 1885 e 1966, foi protetorado britânico e se chamava Bechuanaland. A própria Inglaterra já havia estabelecido, em 1533, que relações sexuais entre homens eram passíveis de morte.

O texto botsuanês não bania, explicitamente, relações entre pessoas do mesmo sexo —mas, sim, “ter conhecimento carnal de qualquer pessoa contra a ordem da natureza” ou tentar fazê-lo. Também proibia que “qualquer pessoa, em público ou privado, cometa qualquer ato de indecência com outra pessoa”. A palavra “privado” foi removida da legislação.

Apesar de não citar a homossexualidade, a norma só era aplicada, na prática, a casais gays, diz Youngman. Segundo o ativista, a última condenação pela lei foi em 2016, mas o homem que foi preso ficou na cadeia por apenas alguns meses. Ele foi contemplado com um perdão governamental distribuído a várias pessoas quando o país completou 50 anos de independência.

Mesmo assim, ficou com o registro na ficha. Ele não fala sobre o caso, segundo Youngman. E não é o único.

“As pessoas têm medo do tribunal, da mídia. Elas têm medo que, se esses casos se tornarem grandes, não consigam achar um emprego depois. Algumas delas não são assumidas. Elas optam por cumprir a pena [de até 7 anos]”, explica.

Em 2010, o país aprovou uma emenda às leis trabalhistas que proibiu demissões por causa de orientação sexual ou estado de saúde, inclusive quanto a ter ou não o vírus HIV.

Discriminação não tem lugar neste mundo, afirmam juízes

Pessoas assistem ao julgamento da decisão que descriminalizou a homossexualidade em Botsuana no dia 11 de junho. — Foto: Associated Press

No dia 11, o juiz Michael Leburu, um dos que assinaram a decisão, declarou que “a dignidade humana é prejudicada quando grupos minoritários são marginalizados”.

Ele e outros dois colegas afirmaram, na sentença, que criminalizar relações sexuais entre adultos do mesmo sexo “perpetua o estigma e a vergonha contra homossexuais e os torna reclusos e isolados. As minorias, que são vistas pela maioria como desviantes ou párias, não devem ser excluídas ou ostracizadas. A discriminação não tem lugar neste mundo”.

A sentença foi comemorada no Twitter sob a hashtag #revoguem164, uma referência a um dos artigos que foram modificados. Youngman espera que a decisão contribua para reverter outras no continente africano — inclusive uma recente, no Quênia, que foi no sentido contrário e manteve a homossexualidade como crime.

Em Botsuana, mesmo com a mudança, o clima ainda é de cautela, dizem os ativistas.

“Eu não diria que as pessoas têm medo de sofrer crimes de ódio, mas estamos cautelosos”, afirma Laone van Vuuren, que é formado em relações públicas, é gay e administra um serviço de bufê em Gaborone.

“Nós somos, de forma geral, uma sociedade conservadora, então nem casais hétero demonstram afeto em público com frequência. Não é comum, em Botsuana, ver casais se beijando na rua, sejam LGBT ou não”, afirma.

“Eu acho que o sentimento geral é de euforia e triunfo para a comunidade LGBT, assim como de apoio para as pessoas não-LGBT em Botsuana que acreditam na proteção de direitos humanos em todo o país”, diz Laone.

Ativistas pelos direitos LGBT comemoram decisão da Suprema Corte em Gaborone, Botsuana, no dia 11 de junho. — Foto: Associated Press

Mas nem todos estão satisfeitos com a decisão. Por ser um país cristão, explica o ativista, há reações contrárias. Segundo levantamento do Pew Research Center, de 2010, 64% da população do país é protestante, e 22%, católica.

Youngman, que cresceu em uma família católica, também acredita que a religião é um dos fatores que contribuem para o preconceito contra a população LGBT em Botsuana. O ativista da Legabibo relata que foi a diversas igrejas para tentar harmonizar sexualidade e fé.

“As igrejas tentavam me fazer mudar, elas fazem você acreditar que isso é possível. Mas, à medida que eu crescia, esses sentimentos ficaram mais fortes, e eu decidi me aceitar”.

Foi a partir dali que ele começou a se dedicar a defender os direitos humanos no país. “Eu não queria que outras pessoas passassem pelo que eu passei”, diz.

A família, por outro lado, aceitou bem saber que ele era gay. Quando veio a público com sua sexualidade, Youngman relata que era um dos poucos homens abertamente gays no país, e vários LGBTs o procuravam em busca de ajuda — e ele acabava abrigando pessoas na casa onde morava, na época, com a mãe.

Pessoas comemoram mudança na lei de Botsuana que descriminalizou a homossexualidade no país no dia 11 de junho. — Foto: Associated Press

Entre as dificuldades enfrentadas pela população LGBT do país está, por exemplo, a mudança de gênero em documentos oficiais de pessoas trans, o que pode dificultar oportunidades de emprego ou que elas viajem para fora do país.

Em uma decisão histórica do tipo, de outubro de 2017, a Suprema Corte de Botsuana permitiu a um homem trans botsuanês mudar de gênero nos documentos, depois de uma batalha judicial que durou 10 anos, segundo a agência de notícias Reuters.

Já os atos de violência costumam acontecer com mais frequência em lugares isolados, relata Youngman. “As pessoas não são de criar confronto, elas evitam dizer coisas na sua cara”, diz.

Apesar de serem incomuns, segundo os ativistas, incidentes em que há violência física também ocorrem. Em novembro do ano passado, uma mulher trans foi agredida na porta de uma boate em Gaborone, em público, e a ação foi filmada e postada em redes sociais.

“Em Botsuana, a violência tende a ser mais verbal do que física, como no Facebook ou no rádio”, diz Carmelo Yoko, que é lésbica. “O estupro corretivo, por exemplo, acontece aqui às vezes também, mas não é tão comum quanto na África do Sul”, diz a artista.

O termo “estupro corretivo” é usado quando o crime é cometido com o objetivo de controlar o comportamento social ou sexual da vítima.

Para Carmelo, ainda é cedo para dizer se a situação no país melhorou ou piorou. “O que posso dizer é que, até agora, não há muita diferença. Somos, agora… bom, acho que não somos ilegais — não somos mais criminosos. Mas isso é só um passo na direção certa”, ressalva.

Mesmo com a descriminalização em Botsuana, a homossexualidade continua sendo crime em 32 dos 54 países da África. Em 4 deles — Mauritânia, norte da Nigéria, Somália e Sudão — é passível de morte, segundo levantamento da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo.

No Egito, apesar de a homossexualidade não estar prevista em lei como crime, é considerada assim “de fato”.

No continente africano, o único país que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo e lhes dá garantias constitucionais é a África do Sul, onde a legislação foi aprovada em 2006.

 

Fonte: G1||

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