Há exatos 35 anos, em 18 de setembro de 1984, o navegador brasileiro Amyr Klink de 28 anos de idade pôs os pés em terra firme pela primeira vez em cem dias. Mais precisamente, na areia da Praia da Espera, em Camaçari, no litoral da Bahia. Pelos mais de três meses que antecederam este momento, Amyr passou seu tempo remando oito horas por dia, limpando o barco, preparando refeições, dormindo e colecionando encontros com tubarões, baleias, gaivotas e peixes.

Amyr Klink levou cem dias e nove horas para cruzar o Atlântico remando sozinho em um barco de 5,94 metros de comprimento e, no máximo, 1,52 metro de largura. Nos braços estava a única força de propulsão para cruzar as 3.700 milhas náuticas, o equivalente a quase 7 mil quilômetros, entre Lüderitz, na costa da Namíbia, e o litoral da Bahia. Em 1984 não havia GPS e as estimativas de localização eram feitas por um instrumento chamado sextante. A comunicação também era escassa. Amyr, amigos e parentes esperavam dia e hora marcada para as transmissões via rádio.

Amyr gosta de falar que os cem dias da travessia foram a cereja do bolo, onde ele mais se divertiu e se sentiu realizado. A viagem, na verdade, começou dois anos antes. Ele participou de cada aspecto do projeto – do desenho do barco às 150 embalagens com café da manhã, almoço e jantar, com alimentos desidratados e sem sal, preparados para que ele pudesse manter uma dieta equilibrada e usando a água do mar para cozinhar e temperar.


Isso sem falar nos problemas para o transporte da embarcação, no medo de capotar e não conseguir desvirar o barco, na descoberta desagradável de que dois remadores já tinham tentado repetir o mesmo feito… e morrido. Daí a resistência para conseguir autorização para deixar a África remando – autoridades temiam ter que dispensar recursos para uma eventual operação de resgate. Problemas que foram ficando para trás, um a um, revelando os acertos do planejamento.

No aniversário de 35 anos da travessia do Atlântico Sul, o portal G1conversou com o Amyr Klink de 2019. Muito diferente daquele de 1984. Hoje, além desta travessia para chamar de sua (e nunca repetida por nenhum outro remador), ele coleciona mais de quarenta viagens à Antártica em veleiros. Em uma delas, ficou um ano ancorado. Passou os meses de inverno com o barco preso pelo mar congelado e sem a luz do sol. Depois, decidiu rumar direto para o Ártico.

Sete anos depois, deu uma volta ao mundo até então inédita. Com um veleiro e sozinho, de novo, pela faixa de oceano mais tempestuosa do planeta. Relatos destas e de outras viagens estão espalhadas por seis livros. As viagens continuam com a esposa Marina e três filhas. Hoje, Amyr administra suas empresas e faz palestras por todo o país para falar, justamente, de planejamento.

Amyr Klink comemora 35 anos da travessia do Atlântico — Foto: Roberta Jaworski/Editoria de Arte/G1


Leia a entrevista com Amyr Klink

G1: Como foi o começo da viagem?

Amyr Klink: No dia 9 de junho de 1984, eu consegui a autorização para sair depois de semanas de burocracia. Eu não sabia que havia três tentativas de caras que morreram. Eles eram militares. Aí a África do Sul gastou uma fortuna pra tentar achar e nunca achou. Eu tinha tanto medo da burocracia que eu saí no dia 10. O primeiro dia foi uma tragédia. Um veleiro foi me acompanhar para se despedir com uns amigos de Lüderitz que me ajudaram a resolver as licenças burocráticas e fizeram uma festa de despedida.

Às 5h da manhã de domingo, estava todo mundo bêbado. Eles vieram bêbados atrás de mim quando eu entrei no mar aberto. Descobriram que eu tinha esquecido um casaco a bordo do veleiro. Só que aí já tinha ondas grandes, de dois, três metros e, na tentativa de passar o casaco, foi um caos.

O casaco enroscou no remo, me arrancaram o remo, me puxaram uma segunda tentativa e eu bati com meu barquinho, imagina, um barquinho pequeno, super carregado, devia ter quase uma tonelada de suprimentos pra três meses e meio. Eu bati no costado do veleiro e abri um rombo no casco. Eles ficaram em risco de naufrágio e sumiram. Assim começou minha viagem.

Amyr Klink em selfie em alto-mar durante travessia do Atlântico em 1984 — Foto: Amyr Klink/Arquivo pessoal

G1: Você considera o dia 18 de setembro como o encerramento da viagem, mas, no dia 19, você ainda foi a Salvador. Por quê?

Amyr Klink: Na maioria das travessias que foram bem sucedidas no Atlântico Norte ninguém chegou fisicamente do outro lado. O pessoal chegava numa praia com rebentação. É que nem chegar em Copacabana e capotar o barco na areia. Eu não queria. Eu não queria chegar num porto, embaixo de um petroleiro, e não queria chegar numa costeira inóspita… queria chegar num portinho e aí eu achei, no último dia, 18, a Prainha da Espera, que é o único portinho abrigado, natural, de toda aquela costa norte de Salvador. Só lá que tem uma baía abrigada. Acho que se eu pudesse escolher um lugar mais legal pra chegar, eu não ia achar.

G1: Como foi a sua chegada?

Amyr Klink: Os últimos dias foram aquela tensão pra tentar achar o lugarzinho certo. No final, tive essa felicidade de encontrar dois pescadores. Eu enrosquei numa rede, aí fui tirar o leme da rede e pensei “bom, pelo menos eu toquei um pedaço do Brasil, uma rede brasileira”. E aí dois pescadores muito pobres vieram gritando “como foi a pescaria?”. Eu falei “não, estou pescando, não…”. Eles perguntaram de onde eu estava vindo. Eu falei “da África” e eles responderam “não sei onde é essa praia. Avisa o Doró que nós vamos voltar na quarta-feira e que o dinheiro tá embaixo da toalha na mesa”. Quando eu chego na praia, por coincidência, eu encontro o Doró.

G1: No fim da viagem, você percebeu que estava sendo acompanhado por muito mais pessoas do que imaginava pelo rádio.

Amyr Klink: Eu cheguei às 13h30min30s. Atrasei, pela primeira vez, 30 segundos no horário do comunicado. Aí, os radioamadores ficaram nervosos porque eu não tinha passado minha posição desde sexta-feira. Eu só falava às terças e sextas e todo mundo queria saber minha distância da costa, estado geral, como eu estava… e eu falei “ah, não posso mais calcular a posição porque cheguei, acabei de chegar”.

Eu não sabia que tinha milhares e milhares de radioamadores que estavam na frequência, mas em respeito à minha condição, com bateria restrita, eles não pediam uma contestação. Por isso, pensei que os meus amigos eram os cinco radioamadores com quem eu falava. Na verdade, eram milhares que se controlavam porque eles queriam, na hora que eu falei cheguei, todo mundo queria falar. Aí, não deu, tinha radioamadores de todos os continentes. Eu desliguei o rádio e saí do barco. Quem me aparece do lado? O Doró.

Ele perguntou exatamente a mesma coisa que os outros dois, queria saber como tinha sido a pescaria. Eu disse que não tinha pescado nada. Ele me vem minutos depois com duas sardinhas de presente e disse “ah, a vida é assim mesmo, tem dia que não dá”. Então, foi uma chegada muito legal e essas horas que eu passei na Praia da Espera foram o maior prêmio que eu ganhei até hoje, sem dúvida.

Barco usado por Amyr Klink na travessia do Atlântico em 1984 — Foto: Prefeitura de Cubatão

G1: Você sempre fala da finitude do barco, de ter que viver com os recursos muito limitados. O que você aprendeu com essa viagem?

Amyr Klink: Eu vivi com muito pouco, eu vivi com menos de três litros de água doce por dia. O brasileiro médio gasta duzentos. É muita água. E eu fui feliz no barco. É um ambiente muito rico de ensinamentos porque não tem espaço para redundância, você não pode desperdiçar. A razão da minha felicidade não foi ter superado meus limites e essas bobagens de autoajuda. A razão da minha alegria no dia que eu cheguei foi cumprir o plano. É legal ter um plano e cumprir. Na hora que eu joguei a âncora e pisei na areia, encerrou o plano, acabou.

G1: Se aquela travessia fosse hoje, o que mudaria?

Amyr Klink: Hoje, por exemplo, eu não levaria a água. O item lógístico que parece ser o mais importante numa viagem de longa duração oceânica. Hoje você tem dessalinizadores maravilhosos, pequenos e portáteis. Você bombeia cem vezes e sai meio litro de água. Eu não levaria o rádio, hoje temos a telefonia satelital. Seria muito fácil fazer o barco com menos da metade do peso. De cara, 300 kg, 350 kg.

Se fosse hoje, eu estaria no Instagram uma boa parte do tempo, nas mídias sociais, provavelmente eu teria uns 2 ou 3 milhões de seguidores e, em uma semana, nenhum. Eu não ia ter mais nada pra falar porque todo mundo já acompanhou o que aconteceu. Então eu teria tido milhões de caras torrando minha vida a bordo na última semana e na primeira semana de volta ao Brasil eu não teria mais nada para contar.

Amyr Klink chegou a Salvador em 19 de setembro de 1984 e recebeu uma homenagem de colegas do remo de São Paulo — Foto: Amyr Klink/Arquivo pessoal

 

Fonte: G1 ||
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