De apito estridente e velocidade que não passava de 23 km/h, uma embarcação batizada de Saldanha Marinho partia de Lagoa Santa, na região metropolitana, para desbravar pela primeira vez o Rio das Velhas até a foz com o Velho Chico, no Norte de Minas. Algo inimaginável para os dias de hoje, o feito aconteceu no fim do século XIX, ainda no período imperial, em um barco com 28 metros de comprimento. No mesmo ponto que outrora guardava um leito preservado, sobrou a água pouco abundante e a ponte batizada em homenagem ao vapor.

As lembranças de um rio que já foi navegável há 150 anos servem de alerta para a destruição dos mananciais, cada vez mais secos. É o que apontou um levantamento do MapBiomas sobre a superfície coberta por água em Minas Gerais. Entre 1985 e 2020, a região ocupada pelos cursos d’água perdeu 118.000 hectares, o que corresponde a quatro vezes a área de Belo Horizonte – a queda no período foi de 16%. O número é o terceiro maior do país, atrás apenas de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. 

Conforme o coordenador da entidade, Carlos Souza, a redução da disponibilidade e qualidade da água nos mananciais é resultado das intervenções no meio ambiente, principalmente com o desmatamento, além da construção de hidrelétricas, poluição e o uso excessivo dos recursos hídricos por todo o país. “Ao mesmo tempo, secas extremas e inundações associadas às mudanças climáticas aumentaram a pressão sobre os corpos hídricos e ecossistemas aquáticos”, resumiu.

Principal afluente do Velho Chico, a situação do Rio das Velhas é ainda pior: metade da superfície de água foi perdida em 30 anos. O pesquisador do MapBiomas, Diego Costa, enfatizou ainda que a tendência é que os recursos hídricos ocupem áreas cada vez menores nas próximas décadas. “No Brasil, a bacia do São Francisco, que inclui o Velhas, é uma das que tem maior uso. Além do enorme número de usinas de energia que interferem nas vazões e na fauna fluvial, há também muita captação para a agricultura”, destacou.

Entre a nascente em Ouro Preto, na região Central, e a foz em Barra do Guaicuí, o Velhas percorre um trecho de 801 km e ainda garante a segurança hídrica para toda a Grande BH, com quase seis milhões de habitantes. A principal área de recarga fica no quadrilátero ferrífero, com forte atuação da mineração. “As empresas provocam os rebaixamentos dos lençóis freáticos dessa região para captar água e levar o minério. Há um grande impacto nas serras da Moeda, Curral, Gandarela e Rola Moça, com crateras enormes que trazem consequências para todo o entorno”, explicou o coordenador do projeto Manuelzão, Marcos Vinícius Polignano.

São Francisco perdeu 15% da superfície de água em 30 anos

Das águas que correm para matar a sede no semiárido brasileiro, o pedido de socorro com a exploração desenfreada. Nos últimos 30 anos, mesmo com as grandes represas criadas para gerar energia, o Velho Chico viu a superfície coberta com o recurso hídrico cair 15%. Enquanto os afluentes secam, o coordenador do Manuelzão alertou sobre as transposições desenfreadas do rio para compensar a perda de água nessas áreas.

“O que é acontece é inverso. Ao invés dos afluentes alimentarem o rio, passam a receber a água do leito principal. Na semana passada mesmo, o estado lançou uma obra que vai captar no São Francisco e levar para o Rio Picão, em Bom Despacho. Não tem salvação, é uma degradação sem planejamento. E agora falam de crise energética hídrica, mas todos já sabiam que isso ia acontecer. Nos dias de hoje, temos previsões para até cinco anos”, pontuou.

Água insuficiente em 65 pontos de Minas

Diante dos períodos de seca cada vez mais severos, aliado à degradação ambiental, Minas Gerais teve recorde de áreas em que a água que chega dos rios e córregos é insuficiente para abastecer todos os usuários: segundo relatório anual do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) no ano passado, eram 65. Em 2015, ano de uma das maiores crises hídricas na história da região, o número chegou a 57. 

As regiões mais críticas ficam na bacia do Rio Paranaíba, no Triângulo Mineiro e Noroeste do Estado, e também no São Francisco. Há ainda problemas nos rios Paracatu, Paraopeba e Pardo, cuja demanda por água pode ultrapassar 100% da vazão do leito. “Tem havido um desmatamento absurdo, com uma ocupação pouco planejada do território, especialmente no cerrado. O agronegócio não perdoa e vai com força total ao invés de fazer um processo mais equilibrado com áreas de preservação. E esse é o resultado”, sintetizou Polignano.

Fonte: O Tempo

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