A cada dia, três crianças de até onze anos são vítimas de maus-tratos em Minas Gerais. O levantamento feito pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) indica que 999 casos foram registrados no Estado durante o último ano. Nesta semana, um caso, ocorrido no bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte, ganhou repercussão. Duas crianças, de 6 e de 9 anos, foram resgatadas em situação de cárcere privado. Elas estavam trancadas em um apartamento e foram socorridas com sinais de desnutrição e com febre. A mãe dos meninos está presa desde o dia 6 de fevereiro, suspeita de ter praticado o mesmo crime contra outra criança de 4 anos. O pai teria morrido de Covid-19, em 2020. O caso é investigado pela Polícia Civil e pelo Ministério Público de Minas Gerais.

“Esses casos de violência ocorrem, principalmente, no seio familiar. Até por isso esses números não refletem a realidade, existe uma subnotificação. As denúncias que chegam até as autoridades policiais são bem reduzidas se comparadas ao que acontece na prática. O pai ou a mãe que está praticando esse delito não vai denunciar e, muitas vezes, para chegar ao conhecimento das autoridades é preciso que alguém informe”, explica o professor de Direito da Criança e do Adolescente, Paulo Tadeu Righetti Barcelos.

A maior parte dos casos apontados pelo levantamento da Sejusp ocorreu em Belo Horizonte. Conforme o estudo, somente no ano passado foram 241 na capital mineira. O levantamento também indica um aumento no número de casos durante o período da pandemia da Covid-19. Em Minas, os registros saltaram de 938, em 2020, para 999, em 2022. Já em Belo Horizonte, o aumento foi de 188 para 241.

“Condições de pobreza e de fome, por exemplo, não são determinantes para que essa violência aconteça, mas elas provocam essa exposição ao risco. É importante destacar que essas as causas são multifatoriais e que esses podem sim ser alguns dos fatores”, alerta a psicóloga Andreia Barreto, que conduz estudos sobre a saúde psicológica de crianças e de adolescentes.

Entenda o crime de maus-tratos

O crime de maus-tratos está previsto no artigo 136 do Código Penal e pode ter pena de reclusão de até 12 anos. Essa categorização foi incluída a partir do Decreto de Lei 2.848/1940. Conforme o Código Penal, essa infração é definida como qualquer situação de exposição a perigo da vida ou da saúde da pessoa. As vítimas, nesses casos de violência, não se restringem apenas a menores de 18 anos. Esse crime também pode ocorrer com qualquer outra pessoa, desde que essa esteja subordinada a guarda, autoridade ou vigilância de outro envolvido.

“É uma violência cometida pelo pai, responsável ou qualquer outra pessoa que possua autoridade sobre a vítima”, explica o advogado criminalista e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Léo Macial Junqueira Ribeiro. Segundo o especialista, a partir do relato desses casos para as autoridades de segurança, seja a Polícia Militar ou a Polícia Civil, é feita uma notícia crime, onde é instaurado um procedimento investigativo.

“Com base nessa apuração, são definidas algumas ações, como a aplicação de medidas protetivas, algumas delas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É acionado um sistema de proteção das vítimas”, acrescenta.

Após o relato da denúncia para as autoridades policiais, o Conselho Tutelar é mobilizado para o resgate das vítimas. O órgão também é responsável por decidir sobre o afastamento ou não dessa criança do núcleo familiar. Essa decisão só é transferida para a autoridade policial quando a vítima está em situação de risco de vida iminente.

O Poder Judiciário também poderá definir a responsabilidade, a partir de um procedimento mais longo, respeitado o contraditório e a ampla defesa. “Via de regra, o que é feito com essa criança é via Conselho Tutelar, por meio de algum familiar, inicialmente; se não houver, haverá o encaminhamento a algum abrigo, onde a vítima será acolhida”, explica a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), por meio de nota.

Como identificar?

Para a psicóloga Andreia Barreto, a mudança de comportamento é um dos primeiros sinais de que uma criança pode estar sendo vítima do crime de maus-tratos. “A escola é o principal lugar para se detectar essa mudança. Uma criança que é muito agitada, por exemplo, passa a ficar mais quieta, ela sente medo de estar com os agressores”, explica. Ainda de acordo com a especialista, as pessoas próximas, sejam os pais, os responsáveis ou até mesmo professores, precisam dar credibilidade para os relatos. “Elas não inventam histórias. É fundamental escutar e tentar entender o que elas contam. Isso vai dar segurança para que descrevam toda a situação”, acrescenta.

Barreto também alerta que essas situações de violência podem afetar na formação da personalidade das vítimas. “Toda violência, seja ela física, psicológica ou até mesmo a situação de negligência, causa traumas na vida da criança e isso pode fazer com que ela reproduza essa violência quando ela se torna adulta. Tendem a ser adultos agressores, inseguros, que possuem dificuldade de relacionar”, aponta.

Ainda de acordo com a especialista, são vários os fatores que levam os pais ou responsáveis a cometerem este crime. Os motivos, segundo Barreto, podem estar relacionados à personalidade e a questões sociais. “As pessoas que cometem violência com crianças são adultos que muitas vezes têm problemas psiquiátricos e que não conseguiram desenvolver uma maturidade do papel de adulto, que expressam comportamento de crianças”, justifica.

Além da falta de maturidade, Andreia Barreto aponta o histórico de violências e o consumo de álcool e de drogas como alguns dos motivos. “As pesquisas apontam que 80% dessas pessoas que praticam esses crimes sofreram violência quando crianças, então lidam com a situação praticando violência. Outra coisa que a gente vê muito é o uso excessivo de álcool e drogas, cometendo negligência e violência contra crianças”, acrescenta.

Como denunciar?

Os casos podem ser denunciados na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, como também de forma anônima, pelo Disque Denúncia, no telefone 181, ou pelo Disque 100, que recebe, analisa e encaminha denúncias de violações de direitos humanos. Em cidades do interior, essas denúncias também podem ser feitas em qualquer unidade policial.

“A Polícia Civil esclarece que toda e qualquer pessoa que tenha ciência ou informação de que a criança e/ou o adolescente seja alvo de maus-tratos pode realizar a denúncia formal. Tanto a Polícia Civil quanto o Conselho Tutelar, que por vezes notifica a Polícia Civil no momento da incidência criminosa, estarão aptos a agir”, informou a PCMG, em nota. O advogado criminalista e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) Léo Macial Junqueira Ribeiro também reforça a necessidade dessa colaboração. “O cidadão comum não tem a responsabilidade de fazer a denúncia, mas ele tem essa possibilidade. Então é importante que ele leve esses casos para as autoridades”, destaca.

Fonte: O Tempo

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