Antigamente no Brasil os ladrões eram tão raros que poderiam ser identificados por categorias. Bons tempos! Quem se lembra? Pais e mães zelosos apontavam, sem erro, aqueles vizinhos e passantes à margem da lei:
– Fulano é mau-elemento. Fique longe dele, meu filho…
Punguista, oportunista, batedor de carteiras, mão-leve, gato, vigarista. Com o objetivo de acrescentar novos itens à referida classificação, acabo de identificar mais uma espécie deveras interessante. Trata-se de uma jabuticaba, produto nativo, genuinamente nacional. Ele foge do perfil dos gatunos anteriores por conta de sua dupla personalidade – um artifício muito adequado e proveitoso, como veremos.
O meio-ladrão, ao contrário dos profissionais ortodoxos, costuma ter emprego fixo e carteira assinada. Vive relativamente bem, tem família, mulher, filhos. Enfim: à primeira vista, um sujeito normal, um legítimo cidadão brasileiro. O que distingue o meio-ladrão dos demais é sua posição estratégica, postado exatamente sobre a linha divisória do bem e do mal. Graças a isso, ele pode ir e vir, correr impune de um território ao outro, em função das circunstâncias.
Exemplo: o meio-ladrão está num bar da avenida, de bobeira, tomando uma cervejinha. Uma turba de manifestantes aparece da esquina, batendo tambores e gritando palavras de ordem. Opa! O meio-ladrão aguça as orelhas: pode ser uma boa chance. A passeata se aproxima e toma novas proporções, a temperatura sobe. Um sujeito atira uma pedra contra a vitrine de uma loja. Crás! O vidro se estilhaça. Dois indivíduos derrubam a porta de aço. Pronto: é a oportunidade que o meio-ladrão aguardava. A bagunça veio a calhar. O estabelecimento é do ramo esportivo. O meio-ladrão não perde tempo: larga a cerveja, invade a loja, recolhe três pares de tênis, duas camisetas, três bonés e mais alguns artigos que cabem na mochila – também furtada.
Outra cena: o meio-ladrão mora próximo a uma rodovia. Numa linda manhã ele chega à janela, espreguiça-se, acende um cigarro. De repente, o barulho costumeiro dos motores roncando pela estrada é interrompido por um rinchar de freios seguido de estrondo. Uau! O meio-ladrão adora estes imprevistos. Só de bermudas, salta da janela e corre em direção ao asfalto. Um caminhão-baú está tombado. Outros cidadãos honestos e inofensivos também foram atraídos ao local.
Não, não: ninguém está preocupado em socorrer feridos, caso existam; muito menos isolar o local preventivamente. O caminhão tombado transporta eletrodomésticos – que sorte! Por isso, como se fosse mágica, aqueles cidadãos honestos e inofensivos sofrem a metamorfose: transformam-se em meio-ladrões. Ligeiros, e às vezes com o auxílio de familiares, pegam tudo e saem correndo, felizes. Em casa, admiram por instantes o fruto do saque e se apressam pra não chegarem atrasados ao trabalho.
O meio-ladrão sente-se muito ofendido caso seja pego carregando um liquidificador e um micro-ondas:
– Me larga! Tá achando o quê? Sou um trabalhador!
É isso, vale lembrar e reforçar: não são ladrões inteiros, só pela metade. Estão mais ou menos seguindo a lei e os bons costumes. No entanto, são espertos e sempre atentos ao desenrolar dos acontecimentos. Assim, não perdem a chance de levarem pra casa uma TV novinha, pares de tênis da moda, sacos de arroz e feijão, caixas de iogurte, frangos congelados ou qualquer artefato que estiver dando sopa em algum ambiente desprotegido.
Sem preconceitos, os meio-ladrões também visam enriquecer seu patrimônio com artigos de menor valor, tais como torneiras de banheiro público recém-inaugurado. Ou fechaduras, maçanetas, válvulas, lâmpadas, espelhos e até rolos de papel higiênico – levados sorrateiramente e desde que não haja testemunhas. Cúmplices discretos, entretanto, são sempre bem-vindos.
Uma amiga – senhora de seus quase 70 anos – tropeçou numa calçada do centro da cidade; calçada irregular e esburacada, padrão de Belo Horizonte. Enquanto estava no chão, meio atordoada, joelhos e cotovelos esfolados, alguns transeuntes vieram ajudá-la. Entre eles, um homem de meia-idade, bem vestido e até bastante simpático. Discretamente, fingindo socorrê-la com carinho, retirou dela o relógio, dois anéis, uma correntinha de ouro com imagem de Nossa Senhora de Fátima – lembrança do falecido esposo –, não se esquecendo ainda de limpar a bolsa contendo os trocados da aposentadoria. Em seguida, como dizem os policiais, o indivíduo rapidamente evadiu-se do local. Certamente tratava-se de um meio-ladrão típico, no auge de sua expertise.

 

COMPATILHAR: