Desde os 3 anos, a pequena Lívia, hoje com 7 anos, escolhe o que vai comer. Sua dieta é composta basicamente de alimentos e bebidas de cor branca ou levemente amarelada, como pão, pão de queijo, filé de frango, ovo, purê de batata, batata palha e suco de soja sabor maçã.

Uma das poucas exceções é o chocolate. Em seu prato, as comidas também não podem ser misturadas – se isso acontece, ela não come.

Outras de suas restrições são quanto à mudança de marca dos produtos a que está acostumada e se alimentar fora de casa, nem mesmo na escola.

Preocupada, a mãe, Lilian Lima, de 41 anos, analista de pós-vendas, já tentou de tudo: elogios, presentes, camuflar ingredientes mais saudáveis nas preparações que faz, chantagem emocional, briga.

“Cheguei até a forçá-la a comer, na hora do desespero. É muito difícil lidar com essa situação”, admite. “Agora, a Lívia está com sete anos e no peso ideal para sua idade e altura (29 quilos). Apesar disso, ela precisa de suplementação nutricional.”

Transtorno alimentar restritivo/evitativo

Quando a seletividade alimentar é muito severa e causa prejuízos à saúde, entra na classificação de transtorno alimentar restritivo/evitativo (TARE).

Embora o problema seja conhecido pelos especialistas em alimentação há muito tempo, só em 2013 foi caracterizado como distúrbio, quando a Associação Americana de Psiquiatria o incluiu na última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM).

Adriano Segal, diretor de Psiquiatria de Transtorno Alimentar da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), explica que, com essa mudança, o TARE passou a ser considerado uma disfunção propriamente dita e com sintomas mais claramente definidos.

“Ele é caracterizado por persistentes perturbações alimentares, que levam a um aporte nutricional e energético insuficiente”, pontua o médico.

Essas perturbações, segundo o DSM, são qualificadas por intensa falta de interesse pela alimentação e pela comida, pouco apetite, evitar dos alimentos com base nas suas características sensoriais – como cor, textura e cheiro -, e recusa alimentar por medo, o que está relacionado a alguma experiência aversiva ocorrida na hora da refeição – asfixia e vômito são algumas.

No geral, quem sofre do transtorno tem mais restrição a frutas, legumes e verduras, preferência por carboidratos e alimentos processados e industrializados, e se nega a experimentar novas comidas.

Somado a isso, o portador de TARE quase sempre apresenta perda significativa de peso – ou falta de ganho de peso -, atraso no crescimento (no caso de crianças) e deficiência nutricional importante, podendo ser necessário receber suplementação oral e, em casos mais graves, parental (por meio de injeções intramusculares, intravenosas ou subcutâneas) ou enteral (por meio de tubo ou sonda).

Fábio Salzano, vice-coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria (IPq) da Universidade de São Paulo (USP), destaca que as carências nutricionais ainda podem favorecer o surgimento de anemia, fraqueza, tontura, desmaios, perda de cabelo, unhas quebradiças, alterações gastrointestinais, interrupção da menstruação e intolerância ao frio, entre outras consequências.

O médico também pontua a interferência do distúrbio no funcionamento psicossocial.

“Em muitos casos, ocorrem mudanças no dia a dia da pessoa, em casa, na escola e no trabalho. Ela deixa, por exemplo, de participar de eventos, festas e encontros por causa da comida, e acaba se afastando do convívio social e familiar. Tudo isso favorece o surgimento de quadros de depressão e ansiedade”, informa.

TARE tem início na infância

O transtorno alimentar restritivo/evitativo, de acordo com Segal, costuma surgir na infância e alguns indivíduos o mantêm na idade adulta. Inicialmente, ele até pode ser interpretado com uma alimentação mais exigente, algo comum nas primeiras fases da vida.

“Tem muita criança seletiva na hora de comer, só que, ao contrário do portador de TARE, elas têm apetite, ingerem o suficiente para crescer e se desenvolver e, conforme seu paladar amadurece, incluem outros alimentos. No caso de quem tem o distúrbio, ao invés de haver aumento no repertório da dieta, há diminuição”, relata.

A disfunção também pode ser confundida com anorexia ou bulimia, mas, diferentemente delas, as alterações alimentares provocadas não são influenciadas por nenhuma insatisfação ou distorção corporal.

“Há relatos na literatura de pacientes com TARE, que só comem hambúrguer, pizza, massa… Essa condição não tem nada a ver com o desejo de perder peso e a contagem de calorias”, afirma Salzano. “Ela também não está relacionada à falta de acesso a comida, questões religiosas ou culturais e causas orgânicas”, acrescenta.

Mas, afinal, o que gera o problema? Como se trata oficialmente de uma nova categoria diagnóstica, ainda há poucos dados disponíveis. Segundo o médico do IPq, essa é provavelmente uma doença multifatorial, com aspectos genéticos envolvidos, e que pode ocorrer em associação com outras patologias mentais, dentre elas espectro autista, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e fobias.

Tratamento multidisciplinar

Para o diagnóstico do TARE, o diretor de Psiquiatria de Transtorno Alimentar da Abeso recomenda que os pais de crianças ou adolescentes que apresentam forte restrição alimentar e alterações no comportamento e na saúde, bem como os adultos com o mesmo quadro, procurem diretamente um psiquiatra.

“Em tese, esse deve ser o primeiro profissional consultado neste tipo de situação, mas sabemos que culturalmente isso não é muito aceito. O mais provável é que os responsáveis busquem a orientação do pediatra e, os adultos, o clínico geral ou o nutricionista, que farão o encaminhamento”, analisa.

Constatado o problema, é hora de iniciar o tratamento. No entanto, justamente por ser um distúrbio mais recente, ainda não existe um protocolo padrão. “O que fazemos é uma abordagem multidisciplinar, com psiquiatra, psicólogo, nutricionista e clínico geral ou pediatra”, indica o especialista.

Segundo ele, a terapia, preferencialmente, a linha cognitivo-comportamental, é imprescindível, assim como a terapia nutricional, para expor o paciente gradativamente a novos alimentos, e o controle clinico. Se necessário, também podem ser prescritos medicamentos.

 

Fonte: BBC News Brasil ||

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