matologista no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o paulistano Carlos Nobre sempre se diferenciou por entender os fenômenos de maneira abrangente, muito além dos modelos meteorológicos. Atualmente, trabalha no Ministério da Ciência e Tecnologia e é membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da ONU, razão pela qual se diz ganhador do Nobel da Paz de 2007. ?As mudanças climáticas são uma ameaça à segurança mundial, pois causam quebra de safras, migrações em massa e guerras?, explica. Da Inglaterra, onde esteve para ministrar uma palestra sobre o futuro da Amazônia no University College de Londres, Nobre falou a VEJA.

O reservatório da Cantareira, que abastece 8 milhões de moradores do Sudeste, está com apenas 4% de sua capacidade. No Rio de Janeiro, o fogo se espalha pela região serrana. Quando essa seca vai acabar?
Não há como prever. O que posso dizer é que, infelizmente, os meses de setembro e outubro estão mais secos que a média histórica. Como são meses de transição para a estação das chuvas, isso não é um bom sinal. Mas também não significa que novembro terá o mesmo perfil. Para 2015, não há elementos científicos suficientes para dizer se o ano será muito árido ou não. Se for, o impacto será devastador.

Com tantos cientistas debruçados sobre o assunto no Brasil, como justificar tanta imprevisibilidade?
Sabemos o que aconteceu, mas desconhecemos as suas causas. Às vezes, passam-se anos até que se consiga saber o porquê de um fenômeno. Sem essa informação, também não é possível responder se a estiagem vai ou não se repetir. Como os últimos dois anos foram muito áridos no Nordeste, criamos, em novembro do ano passado, um grupo de trabalho com alguns dos mais importantes climatologistas do Brasil para melhorar as previsões meteorológicas. Não enxergamos nos ventos, na temperatura ou na pressão no Atlântico ou no Pacífico nenhum sinal que pudesse prever a estiagem no Sudeste. Mesmo depois de a seca se estabelecer, voltando a estudar os modelos computacionais, verificamos que nenhum deles dava indício do que acabou acontecendo. As previsões no Sudeste sempre foram mais complicadas. Enquanto no Nordeste o clima depende muito do que se passa nos oceanos Atlântico e Pacífico, no Sudeste a lógica é caótica. É quase impossível decifrar sinais precursores e desenhar o cenário mais possível.

O que se sabe, então, sobre a seca no Sudeste?
A estação do inverno normalmente é um período de pouca chuva na área entre o Paraná, a Bahia e o sul da Amazônia. Nessa época, um sistema de alta pressão atmosférica que vem do oceano impede que as frentes frias tragam a umidade do Sul. Muito atipicamente, esse quadro aconteceu durante o verão, de janeiro a março. Esse sistema seco e de alta pressão ficou parado por ali, barrando as nuvens e provocando a seca. Uma das consequências é que tivemos um mês de fevereiro muito quente. Quando esse sistema arrefeceu, em abril, a temporada de chuvas já havia acabado.

É possível pôr a culpa no aquecimento global?
O planeta está mais quente e há mais vapor de água na atmosfera. É um fato. Então, a probabilidade de ter nuvens, tempestades e ventanias aumenta. Nos anos em que não há chuvas demais, prevalece o cenário oposto. Vai-se então de um extremo a outro. Na Amazônia, há uma alternância de secas e inundações desde 2005, quando aconteceu a maior estiagem até então. Em 2010 o quadro foi ainda mais severo. Mas em 2009 a região viveu uma inundação recorde, que foi quebrado pelo excesso de chuvas de 2012, e novamente em 2014. Em dez anos, a Amazônia teve as duas mais intensas estiagens e também as três piores inundações. De acordo com as conclusões do IPCC, da ONU, essa variabilidade maior entre extremos é provavelmente fruto do aquecimento global. Sobre o que está acontecendo em São Paulo e na região da Cantareira, contudo, prefiro ser mais cauteloso.

Por quê?
Há outras complicações. Em anos anteriores, em São Paulo ocorreram chuvas muito intensas, que causaram inundações três vezes mais frequentes do que há setenta ou oitenta anos. A temperatura média na cidade está de 2 a 4 graus mais alta do que no início do século passado. A causa mais provável dessa alteração no microclima de São Paulo é a urbanização. Com a troca radical de vegetação por asfalto e concreto, São Paulo se tornou uma ilha de calor. O aumento de 30% na média anual de chuvas na cidade nesse período se deveu à elevação da temperatura. Nasci e vivi em São Paulo até os 17 anos. Eu me lembro da inundação no Mercado Municipal pelo transbordamento das águas do Rio Tamanduateí. Foi marcante por ser um evento raro. Atualmente isso vinha acontecendo duas ou três vezes por ano. É preciso estudar se o regime de chuvas alterado na área urbana de São Paulo tem relação com a estiagem na região da Cantareira.

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