Belo Horizonte registrou, em um ano, aumento de 167% de crianças entregues para adoção por meio do Entrega Legal. Dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) mostram que 24 entregas aconteceram em 2021 e nove em 2020. Somente até junho deste ano, 12 foram registradas. Para um juiz da Vara da Infância da Juventude, a explicação para o crescimento se dá pelo fato de as mulheres terem “conhecimento dos direitos” que possuem.
O debate em torno da Entrega Legal se intensificou depois de a atriz Klara Castanho, de 21 anos, ter publicado uma carta aberta após ter estupro e doação de bebê expostos. Para entender como funciona o processo da Entrega Legal, a reportagem de O Tempo entrevistou o juiz José Honório, da Vara Cível da Infância e Adolescência de Belo Horizonte.
O magistrado explica que “em todos os casos” as genitoras são questionadas sobre quando souberam do programa e que, na maioria das vezes, elas respondem que souberam em consultas pré-natal ou mesmo na maternidade.
“Quando ela expressa a vontade de realizar a entrega legal, o primeiro passo é encaminhá-la à Vara da Infância. Por lá, ela é acolhida por uma equipe técnica que fará uma escuta sem qualquer tipo de julgamento. O objetivo é a genitora expressar o desejo. Posteriormente, ela é orientada e passa por acompanhamento psicológico para ter a certeza da decisão”, explica.
Assim que o parto acontece, a genitora, mais uma vez, retorna à Vara da Infância e passa por outra entrevista técnica para manifestar se mantém a decisão de entrega ou se houve mudança de planos.
“Se tiver a manutenção pela entrega legal, ela é acompanhada pelo defensor público que faz entrevista reservada e a orienta solucionando dúvidas de natureza jurídica. O passo seguinte é uma audiência e nela a genitora é indagada a respeito do desejo, dos direitos e das consequências da decisão”, esclarece Honório.
O sigilo é garantido durante todo o processo, conforme enfatiza o titular da Vara da Infância e Juventude. “A genitora tem direito ao sigilo da decisão e este é o ponto mais importante. Todos que atuam em contato com a genitora devem garantir esse sigilo, até mesmo por conta do emocional da genitora. Isso é fundamental para que tenha segurança e tranquilidade na tomada de decisão”.
Honório ainda destaca que ao optar pela entrega legal não cabe nenhum julgamento de juiz diante dos argumentos apresentados pela genitora, ou seja, a decisão é única e exclusiva dela. “A entrega acontece logo após o parto. A legislação é muito clara a respeito disso. Posteriormente tem outro tipo de tratamento e caracteriza abandono e isso é crime. A Entrega Legal não é crime”, enfatiza.
Mesmo após optar por entregar o bebê para adoção, é possível mudar de ideia. “A genitora tem dez dias para arrependimento e informar que quer desistir da decisão. Isso é imediatamente acolhido sem questionamento. Fazemos então um percurso para integração familiar entre genitora e bebê, além de acompanhamento por seis meses”, afirma Honório.
Sigilo garantido
Apesar de a atriz Klara Castanho ter tido o direito do sigilo violado, o juiz esclarece e tranquiliza outras genitoras de que esse caso é isolado. “A mensagem que deixo é de que existe um respeito muito grande de todos nós pela decisão da genitora e, por isso, garantimos o sigilo. Decidir pela entrega legal não é simples, pelo contrário, é uma decisão muito forte”.
“Não significa [que o ocorrido com Klara] aconteça de forma generalizada. É uma exceção e todos os casos são preservados. Temos cuidado muito grande em dar segurança à genitora para ela ser apoiada”, complementa o juiz.
A legislação brasileira não prevê punição em casos de quebra de sigilo, como ocorrido com a atriz Klara Castanho. “Não temos um tipo penal específico. Talvez a nossa legislação tenha que construir”, comenta Honório.
A defensora pública Samantha Vilarinho, que também é coordenadora estadual de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, aponta um caminho. “Pode ingressar com ação indenizatória reparatória. Em Belo Horizonte, a Entrega Legal funciona muito bem. As mulheres não precisam ter receio. Quanto mais elas conhecerem os direitos, mais serão atendidas”.
‘Julgamento em todas as formas’
O caso de uma menina de 11 anos, em Santa Catarina, que chegou a ser impedida de fazer aborto após ser vítima de estupro aliado com a repercussão da Entrega Legal de Klara Castanho reforça, na análise de Samantha Vilarinho, o “retrocesso nos direitos fundamentais”.
“Existe uma tendência conservadora da sociedade de controlar o corpo das mulheres. Os dois casos mostram que o ‘problema’ é a decisão da mulher. Se uma menina quer realizar aborto não pode. Se uma adulta não realiza aborto, mesmo sendo estuprada, e entrega para adoção também está errada, pois foi displicente. A mulher é julgada de todas as formas”.
Fonte: O Tempo