Tomo a liberdade de pinçar o termo que titula este artigo, cujo autor é Carlos Ayres Brito, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, poeta, um sergipano que constrói catedrais de linguagem com a constante busca de analogias para facilitar a compreensão do juridiquês.

Em entrevista ao jornal O Globo, o simpático jurista fala de maneira clara sobre as ameaças que pairam sobre nossa democracia. Há um contexto que junta financiadores de atos ilícitos, propagadores do caos, aventureiros oportunistas, inocentes úteis, enfim, massa de manobra usada para destroçar a vida democrática.

A democracia vive momentos desestabilizadores em todos os quadrantes do planeta. A democracia, mesmo considerada o melhor sistema para orientar os governos e contemplar as demandas da sociedade, conforme dizia Churchill, é, hoje, alvo de bombardeio por parte dos exércitos manobrados e manipulados por bandos que desejam implantar em seu lugar o mando e um mundo ditatorial.

A democracia tem permitido, inclusive, que se lute contra ela.

Sabemos que suas promessas ainda não são uma realidade. Bobbio lembrava as promessas não cumpridas da democracia: a força das oligarquias, a falta de clareza dos governos, a falta de acesso à justiça, a educação para a cidadania, meta distante de ser realizada, o poder invisível.

Debaixo dessa teia, governantes apelam para o populismo, modo cabreiro para driblar as demandas das massas e anunciar para elas a chegada ao paraíso, por eles traduzida como dinheiro no bolso, alimento barato, saúde para os desvalidos, transporte barato, educação de alto nível, segurança na porta de cada um. Muita mistificação, engodo. As massas, engabeladas, acreditam.

Ortega y Gasset já alertava nos anos iniciantes do século XX, colocando o aviso na boca bigoduda de Nietsche, que fazia temporada de tratamento nos penhascos de Engadine, nos alpes suíços: “vejo se avolumar a onda de niilismo”. De lá para cá, a ignorância continuou a impregnar parcelas do planeta, a fazer crescer a quantidade de gentes desorientadas, a dar oportunidade a oportunistas, aventureiros, a massas que clamam por signos de orientação, a alas desejosas de melhorar suas vidas. Tal meta originou a criação de ovelhas conformadas com o pasto. Sem alma cívica. Sem vontade de caminhar na rota civilizatória. Basta que consigam se alimentar.

Lembro, a propósito, que os indivíduos agem de acordo com seus instintos. O primeiro é o da sobrevivência, que Sergei Tchakhotine, o cientista social russo, designa como o “impulso combativo”. Para sobreviver, a pessoa adentra a arena de lutas, até para morrer. O segundo instinto é o nutritivo, que condiciona as gentes a lutar pelo seu estômago, o que as fazem aprovar governos que atendam às demandas alimentares. O terceiro impulso é o paternal, que joga os seres na teia dos valores humanistas, o amor, a solidariedade, a amizade, o companheirismo. E, por último, o instinto sexual, ligado à reprodução da espécie, e que patrocina todos os conflitos e as lutas na área dos gêneros.

Vamos acompanhar esses vetores e sua influência na dinâmica civilizatória do país. Como esses elementos influirão na política e, mais que isso, nas ações e vontade da comunidade nacional?

Os atos recentes de vandalismo, que destruíram espaços e feriram obras de nossa cultura, são provas incontestes de que a barbárie ainda é um traço de nossa índole.

Constatar que cerca de 50% são mais intolerantes hoje que no passado tem um alto significado. Pesquisa recente mostra que ainda somos um povo bárbaro.

E que pode cometer um “democraticídio”. A morte suicida de nossa democracia pode acontecer?

Inacreditável a hipótese. Rezemos para o “Deus brasileiro”. Ajude-nos, amigo Francisco, nosso vizinho argentino, hoje sentado no trono de São Pedro.

 

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

 

 

 

COMPATILHAR: