Assim como na nascente que, por enquanto, ainda existe na propriedade de sua família, as águas brotam com persistência dos olhos de Danila Fernanda de Paula, de 44 anos, enquanto ela relembra os passeios ao lado da avó para fazer piqueniques na mina d’água. Alvo de um processo de desapropriação movido pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), os pais dela, seu João e dona Geralda, podem ser forçados a deixar o local a qualquer momento, para que a casa quase secular, junto com as memórias de toda a família, seja soterrada por uma pilha de rejeitos de minério que será instalada logo acima da comunidade de Santa Quitéria, na zona rural de Congonhas, na região Central de Minas Gerais.
“Nessa hora eu só penso no forno de barro ali, onde minha avó adorava fazer biscoito de polvilho e outras merendas, como os antigos costumavam chamar. Lembro da piscina com a água da nascente, onde a minha filha ainda conseguiu nadar, mas a minha neta já não vai ter essa chance. Me vem à lembrança das brincadeiras simples, de escorregar no barro. Penso nos tijolinhos do chão do corredor, que era algo que me encantava quando criança e que, se eles (mineradora) tomarem a casa, a gente não vai poder nem ver mais, né? A gente nunca imaginava que ia ser despejado”, conta, emocionada, Danila.
Acostumado com a tranquila rotina diária, que vai desde preparar a ração para cuidar dos poucos gados que cria até a produção de fubá, usando um moinho de pedra que era de seu avô, João Batista de Paula, de 74 anos, não resistiu à pressão causada pela possibilidade de perder a propriedade adquirida por seu bisavô. Segundo Danila, agora o idoso toma medicamentos psiquiátricos. “Está com medicação para ansiedade e depressão, pois não consegue dormir direito, não consegue comer”, diz. “O dinheiro para a gente não tem importância. Dinheiro a gente trabalha, levanta cedo e garante o sustento. Mas e aí, e se eu ficar sem meu pai, sem minha mãe? De que vai valer o dinheiro?”, questiona a mulher, com a voz trêmula pelo choro preso na garganta.
O pesadelo da família teve início no dia 12 de julho de 2024, quando o governador Romeu Zema (Novo) publicou um Decreto com Numeração Especial (DNE) 496, que previa a desapropriação de uma área de 261 hectares, considerada de “interesse público”, para a implantação de uma pilha de rejeito filtrado da mineradora. Desde então, a população da pequena comunidade, que totaliza cerca de 400 moradores, vivia na incerteza sobre quais imóveis seriam alvo do processo de remoção.
Passados quase um ano do decreto, a Prefeitura de Congonhas divulgou, no início de julho de 2025, um mapa apresentado em novembro do ano passado pela mineradora que trazia a área que será afetada pela expansão do empreendimento. Após negociar diretamente e conseguir adquirir grande parte das propriedades da área almejada, a CSN judicializou o processo contra seu João e dona Geralda, e, no último dia 2 de julho, dois dias após recorrer da decisão em primeira instância, obteve na Justiça a chamada “imissão de posse”, que passa a propriedade para a empresa. O valor oferecido pela CSN durante a negociação, antes da judicialização, não foi divulgado.
Para seu João, eles foram um dos únicos moradores a terem o processo judicializado por se tratar de uma das poucas propriedades a estarem regularizadas. “O meu aqui está legalizado, tá tudo na minha documentação, por isso acho que me pegaram para Cristo. O restante (dos moradores da região impactada) a CSN está negociando direto com as pessoas, e muitos aceitaram por não terem a documentação”, afirma o idoso.
“Vamos fazer uma barreira humana”, diz idosa
Com 66 anos, Maria Geralda de Paula garante que, no que depender dela, haverá luta contra o processo de desapropriação. “Queria deixar para os moradores de Santa Quitéria que não estamos cedendo pois também estamos pensando neles. Se ocuparem aqui, vão espremer para tirar eles também. Se o povo unir, vamos fazer uma barreira humana. Mas, para isso, precisamos de união”, diz com esperança a idosa.
Ela explica que, em abril deste ano, o juiz de 1ª instância tinha determinado que fosse produzido um laudo pericial para verificar se a indenização oferecida pela CSN era justa. A decisão favorável à família, entretanto, foi derrubada no último dia 2 de julho, quando, após dois dias de análise, o desembargador Octávio de Almeida Neves acatou o recurso apresentado pela mineradora.
Por nota, a mineradora informou que, desde a publicação do decreto do governador, 27 dos 30 imóveis já foram adquiridos “de forma amigável” pela empresa, o que representa 90% da área que abrigará as pilhas de rejeitos. “No início, quando eles vinham aqui para negociar, antes de levar para a Justiça, um funcionário da CSN chegou a falar para minha irmã que eles estavam comprando terra, não história. Minha resposta para eles é que, diferente deles, a gente não tem apego a coisas materiais, mas tem história. Isso aqui é centenário. Você vê que não tem luxo, não quisemos modificar nada para ficar essa lembrança. O dinheiro que eles estão oferecendo é injusto, mas nós não somos gente de luxo, somos gente de história”, disse, orgulhosa, dona Geralda.
Na última terça-feira (15), um oficial de Justiça, seguranças e outros funcionários da CSN foram até o imóvel, levando placas com a inscrição de “Propriedade particular” e uma corrente para o portão, com o objetivo de cumprir o mandado de imissão de posse expedido pela Justiça. Segundo os moradores, o objetivo era, segundo a mineradora, colocar uma corrente no portão da casa, porém, sob pressão da comunidade local, os funcionários da CSN deixaram o imóvel após seu João passar mal. O idoso foi atendido por uma enfermeira do posto de saúde local. Eles teriam um prazo de 20 dias para retirar todos os pertences do terreno de 7 hectares, incluindo as criações.
Apesar de ser apontada como uma opção mais “segura” do que as barragens de rejeito, as pilhas não estão livres de risco, já que, segundo o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), os empilhamentos podem ter efeitos ‘tão graves’ quanto rompimento de barragens. Em fevereiro deste ano, a reportagem de O TEMPO denunciou, com base em dados obtidos com a Agência Nacional de Mineração (ANM) via Lei de Acesso à Informação (LAI), que Minas Gerais tinha 742 dessas “novas barragens”, que, diferentemente das estruturas de contenção, não contam com legislação específica ou transparência. No fim do ano passado, 288 pessoas foram desabrigadas após um deslizamento em uma pilha de rejeitos de uma mina de ouro em Conceição do Pará, na região Centro-Oeste de Minas Gerais.
Casa é símbolo da comunidade

Foto: Flavio Tavares / O Tempo
Líder comunitária em Santa Quitéria há 15 anos, Aline Soares também conta, com orgulho, que é nascida e criada na pequena comunidade rural. Para ela, a história da casa de seu João se mistura com a do distrito. “Essa casa faz parte da memória da comunidade inteira. Ao desapropriar aqui, eles estão mexendo com a estrutura que a gente tem de resguardo da comunidade, com a nossa memória”, pondera.
Com saudosismo, ela lembra dos momentos vividos no local durante sua infância. “Todo mundo vinha aqui apanhar jabuticaba, saía da escola e não ia para casa para almoçar, a gente vinha direto para cá. Dona Quinha (mãe de seu João) já ficava ali na portinha, com o vestidinho, esperando a gente. Saía todo mundo com as sacolinhas cheias de jabuticaba. A piscina, foi a primeira que eu vi na vida, que eu nadei. Essa casa tem valor emotivo pra comunidade, as mulheres vinham fazer merenda no fogão de lenha”, relembra Aline.
O TEMPO entrou em contato com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), que informou, por nota, que existem dois procedimentos em tramitação na Promotoria de Justiça de Congonhas, sendo um deles para analisar, “com fundamento em questões eminentemente ambientais”, a legitimidade do decreto de desapropriação de Zema.
“O outro expediente tem por objeto o acompanhamento preventivo do projeto de expansão da CSN, notadamente o licenciamento ambiental de pilhas perante o órgão ambiental estadual”, completou.
Desapropriação ocorre antes mesmo de licenciamento
Questionada pela reportagem, a CSN informou que o processo de desapropriação do imóvel acontece antes mesmo do início do licenciamento ambiental na Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Segundo a empresa, isso ocorre por ser necessário o acesso à propriedade “o quanto antes” para a realização de estudos geotécnicos (sondagens) e ambientais para o início do licenciamento da pilha que será implantada na região.

Foto: Flavio Tavares / O Tempo
“Ressalte-se, mais uma vez, que 90% das propriedades já foram adquiridas ou negociadas de forma amigável, sem necessidade de ações judiciais. No entanto, o processo de licenciamento não pode ser iniciado sem a devida ‘permissão’ do superficiário (proprietário) para a implantação do projeto. Ou seja, é necessário que a empresa detenha a posse da terra para que o licenciamento possa ocorrer — e não o contrário”, escreveu.
A mineradora justificou ainda que o Decreto de Utilidade Pública do governador Romeu Zema visa viabilizar a implantação do projeto Pilha de Rejeitos Sul Maranhão, que é essencial para a “continuidade operacional” da Mina Casa de Pedra, o que seria essencial para a operação livre de barragens da empresa e, ainda, para se concluir o processo de descaracterização das estruturas já existentes no complexo minerário.
Indagada sobre qual será o tamanho da pilha a ser instalada no local, a CSN não divulgou a informação, alegando que o projeto está em fase de desenvolvimento por empresas especializadas. Entretanto, a mineradora alegou que o mapa divulgado pela Prefeitura corresponde à área total necessária ao projeto, abrangendo não somente a área da pilha em si, mas, também, os acessos, estruturas de apoio e as chamadas zonas de segurança, que são voltadas à redução dos impactos e ao distanciamento de comunidades, moradias e cursos d´água.
“Assim, a pilha será implantada com o devido afastamento de comunidades e moradias, inclusive considerando um estudo hipotético (e absolutamente improvável) de sua ruptura. Ou seja, na remota hipótese de ocorrer algum deslizamento, nenhuma moradia seria afetada. Nesse contexto, a base projetada da Pilha Sul Maranhão estará a mais de 1,3 km de distância da comunidade Santa Quitéria”, alega.
A empresa também foi indagada sobre a afirmação dos moradores de que funcionários teriam dito que estariam comprando “terrenos” e não “história”, mas, até a publicação, ainda não tinha se manifestado. O governo de Minas e a Semad foram questionados por O TEMPO sobre o decreto e o processo de licenciamento da ampliação da CSN, mas ainda não se posicionaram.
Fonte: José Vítor Camilo- O Tempo