Ao longo de nossas vidas, poucos de nós podemos afirmar que fez o suficiente para influenciar positivamente ou mudar o curso de mais do que uma geração. Mesmo para aqueles que são pais ou avôs (ou mães ou avós), a barreira de duas gerações parece ser o limite imposto pela derrocada física e mental que o tempo nos impõe. Mas nada como a própria vida (ou a morte) para nos mostrar que a lógica da vida (ou da morte) nem sempre é essa e que sempre temos, ao lado, exemplo do que não somos e, provavelmente, não seremos.
No caso da história esportiva de Formiga, esse exemplo tem nome e atende pela alcunha de Pavão. Ao falecer, Pavão suscitou nas redes sociais uma leva de manifestações, de gente que vai dos 15 aos 60. Atletas ou não, formiguenses de nascimento ou de adoção, gente ligada ao esporte ou que dele só ouviu dizer (e bem!), todos se esmeraram em lamentos e elogios ao mestre. Por baixo, em mais de 50 anos de vida esportiva, Pavão forjou inúmeras gerações de atletas no Formiga Tênis Clube, especialmente como treinador de vôlei e basquete, mas também de futsal e handball. Sem falar de sua atuação como educador físico, como no saudoso Colégio Antônio Vieira. Nenhuma dessas gerações o teve em baixa consideração, como treinador ou ser humano, que a todos tratava com respeito e consideração. Todos os atletas formiguenses, daquelas e de outras modalidades, o tinham como fonte inesgotável de paciência e bons ensinamentos, que deles se podia utilizar, dentro e fora das quadras.
Às vezes, atuando mais como psicólogo, outras como pai ou tio zelosos, Pavão sempre foi um porto seguro para tantos que o tinham como alguém em quem se podia confiar ou da parte de quem só vinham palavras de incentivo e encorajamento. Broncas, quando existiam, eram somente as necessárias, na medida exata da tentativa de alterar o curso ruim de um set ou uma partida. Gritos, xingamentos ou palavrões, talvez ele os guardasse consigo, sabendo que nenhum de nós queria ou merecia ouvir. Sim, NÓS! Faço parte de uma dessas gerações que teve o privilégio de ter sido seu atleta. Comecei como aprendiz na arte de manusear a bola laranja, em treinos na quadra onde hoje está o Ginásio Poliesportivo. Sua linha de treinamento era americana, a usar muito medicine ball, com posse, manejo e jogadas ensaiadas, com bastante movimentação (passing game) e muito treino de fundamentos. Como é divertido lembrar, ainda hoje, quando ele pedia rápida infiltração lateral para puxar um ataque e berrava: “desgaia, desgaia…” (como a dizer: “vai, puxe o contra-ataque!”). Era chato ficar horas a treinar, repetida e exaustivamente jogadas ou arremessos. Queríamos jogar, partir para os coletivos, que nos divertia mais e era fonte de competição e distração. Nada disso, ele dizia. Primeiro tem que ter fundamento, domínio e posse de bola. Estava certo. Muito dos sucessos (absolutos ou relativos) que colhemos depois, vieram dessa base de treinos.
Lembro de partidas amistosas que fizemos, com derrotas e vitórias. Sem importância alguma, embora ficássemos chateados quando perdíamos. Mas aí vieram os torneios oficiais, quando as vitórias são mais comemoradas e as derrotas doem mais, especialmente pra quem tem 16 anos. Com especial carinho me recordo do campeonato mineiro de basquete infanto-juvenil, no longínquo março de 1979, em Varginha. À medida que se aproximava o torneio, Pavão nos impunha uma pesada rotina de treinos. Nosso grupo tinha estatura baixa, comparada com nossas adversárias (Sete Lagoas, Uberlândia, Campo Belo, Varginha, Perdões, e outras, num total de nove equipes). Para nossa alegria, um dos mais fortes concorrentes, Garfo Clube, de Governador Valadares, desistira da competição. Ainda assim, seria tarefa hercúlea enfrentar times melhores que o nosso. Contra isso, Pavão enfrentou com conversa, muita conversa, prelecionista hábil que sempre foi. E muito treino.
Nos dirigimos à cidade do sul de Minas de Kombi, conduzida pelo Irineu, dublê de motorista e consertador de rádios e TV´s. Dentro do veículo, dez adolescentes apinhados e ruidosos, todos amigos e companheiros dentro e fora das quadras e com habilidades notáveis, cada qual em sua posição. Tínhamos rápido jogo de transição, com destaque para os contra-ataques do Cláudio Porto (Dinho), um bom jogo de fundo de quadra, especialmente na defesa, com José Antônio (Carioca) e Angelo Nogueira, e um duro trabalho de meio de garrafão feito pelo Paulão Faria, nosso homem mais alto, além de Vladimir Vaz, excelente arremessador. Completando o time, os amigos Stênio Rabelo, Edmilson Passos, Luiz Cláudio (Nego) e como armador do time, o autor desse texto.
Jogamos muito. Muito além de nossas próprias expectativas. Debutamos no torneio contra Campo Belo, com convincente vitória. Ficamos animados. Sobrevieram vitórias e derrotas e ficamos em terceiro, atrás de Uberlândia e Sete Lagoas, potências da época. Contudo, como capitão do time tive uma pequena (e única!) contrariedade com mestre Pavão: na hora do sorteio entre os semifinalistas, para ver quem jogaria com quem, mestre Pavão não compareceu. Fiquei chateado, fui tomar-lhe satisfações (que ousadia!) porque em minha inexperiente vida imaginava ter havido manipulação no sorteio para que as equipes mais fortes se enfrentassem na final (quanta ingenuidade!). Ele gargalhou com minha preocupação e me tranquilizou. No sorteio, pegamos Sete Lagoas. Perdemos e fomos para a disputa do terceiro posto, quando vencemos o time da casa e a entusiasmada torcida local, numa memorável manhã de domingo.
Mais importante que nossa colocação final, o que sempre me vem à mente desse torneio foi a maneira serena e firme com que fomos conduzidos pelo mestre Pavão. Na derrota, sempre nos consolou. Na vitória, comemorava conosco em profunda alegria. Estava sempre conosco, comentando atuações dos adversários, dando instruções para a próxima partida sobre quem exercer marcação individual, almoçava e jantava conosco e só deu uma escapadela quando foi visitar uma rinha de galo.
Dessa enriquecedora experiência, sobrou tempo até para o riso e o pitoresco. Conto: nesse torneio ficamos “hospedados” num apertado e sombrio quarto coletivo, com beliches, dentro das dependências do Varginha Tênis Clube. Pavão logo disse que tinha que ficar na parte de baixo. Assim foi. O que ninguém sabia é que nosso mestre tinha o hábito de “esconder” um penico, embaixo do beliche, para seu alívio na madrugada, uma vez que o banheiro ficava fora do quarto. Contudo, numa determinada manhã, depois de ter enchido o instrumento, ele se descuidou e, ao levantar, deu um chute no penico, jogando xixi por quase todo o quarto. De imediato ficou bravo (creio que consigo mesmo) e diante do que não tem volta, começou a rir e a dizer que o quarto ia feder bastante, brincando sobre quem recairia a responsabilidade de limpar o chão.
Esse singelo texto é uma maneira de tornar pública não só a gratidão da minha geração do basquete do FTC (como a de todas as outras modalidades), como também externar nossa consternação por sua morte. Cheguei a brincar, no dia de seu falecimento, que à tarde já estavam marcados, no céu, treinos de vôlei e de basquete.
Se ele se foi, fica seu legado, que não é pequeno, ao esporte e aos jovens de Formiga. À família, filhos, netos e especialmente Dona Rejane (dupla que muitos carinhosamente chamavam de Eva Vilma e Carlos Zara), fica a gratidão e a homenagem de centenas e centenas de jovens, que dele tiveram ensinamentos e instruções, para os jogos das quadras (em Formiga e em Minas) e para os embates da vida (para todo lugar e todo o sempre).
Mestre Pavão descanse em paz e tenha consigo nossos eternos agradecimentos.
Marco Aurélio de Mello Machado é formiguense e ex-atleta do Formiga Tênis Clube