O selo ‘Quebre o Silêncio’ vai identificar bares, casas noturnas e restaurantes treinados para acolher uma mulher vítima de violência em Belo Horizonte. Nesses estabelecimentos, a mulher não será questionada, silenciada ou julgada. Essa é a promessa que fica depois que a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) publicou o decreto Nº18.269 que obriga os estabelecimentos a treinarem seu pessoal em um protocolo parecido com o “No Callem” (“não se calem”, em português), de Barcelona, na Espanha, onde o jogador Daniel Alves foi preso suspeito de estupro.

De acordo com o decreto da PBH, o protocolo vai partir de três princípios: o foco da atenção é a mulher, não o agressor; a intimidade e as decisões da mulher devem ser respeitadas; e deve-se evitar sinais de cumplicidade com o acusado. A partir daí, uma série de medidas serão definidas e repassadas às equipes dos bares, casas noturnas e restaurantes da capital.

“Será um passo a passo, a forma de proceder, o que falar ou não falar com a mulher, qual rede de proteção pode ser acionada”, explica a secretária municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, Rosilene Rocha. Segundo ela, foi formado um comitê para produção do protocolo, com mulheres da sociedade civil, a Prefeitura de BH e a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes em Minas Gerais (Abrasel-MG) no centro da discussão. “Já estamos em contato com a Abrasel e sabemos que temos que conscientizar aqueles funcionários que às vezes têm medo de intervir diante de uma situação de violência, não sabem o que fazer. Além de haver um grande número de funcionários homens”, diz.

Nas diretrizes do projeto, os estabelecimentos devem oferecer apoio imediato à vítima. Ela deve ser direcionada a um lugar tranquilo onde fique segura e possa decidir sobre qual encaminhamento tomar. A equipe mantém, durante todo o tempo, o acolhimento, acionando a polícia ou outra instituição, se necessário, e acompanhando a mulher até a saída, com a chamada de um carro ou por alguém de confiança.

O protocolo, se tivesse iniciado há pouco tempo, antes do Carnaval, já teria feito a diferença para a empresária Adriane Mendonça, de 24 anos. Durante uma festa na casa de shows do Clube Chalezinho, no bairro Estoril, região Centro-Sul de Belo Horizonte, ela denuncia ter sido assediada, ter reagido, mas, mesmo assim, não ter recebido acolhimento dos funcionários. “Eu vivi isso. Não tive amparo, não apareceu segurança. Minha amiga quem separou o homem e, depois, colocaram ele em um lugar separado e eu fui embora sozinha, derrotada”, lamenta.

No caso de Adriane, ela abriu boletim de ocorrência na Polícia Civil e está em ação processual, mas, a maioria das mulheres, sem amparo, não notificam os casos. De acordo com dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), no ano de 2022, foram 196 registros de crimes contra a dignidade sexual em bares e restaurantes de Minas Gerais, dados de crimes como estupro, assédio e importunação sexual. Isso, mesmo que 66% das mulheres brasileiras já tenham relatado ter sido vítimas de algum tipo de assédio nos mesmos estabelecimentos, segundo uma pesquisa realizada pela marca de uísque Johnnie Walker e pelo Studio Ideias divulgada neste mês de março.

“Quero acreditar que, virando lei, ela seja realmente cumprida. Quero que quando uma mulher passe por essa situação, ela seja amparada, não seja julgada, que seja levada à sério”, continua Adriane. Para o presidente da Abrasel-MG, Matheus Daniel Moraes, a medida está bem encaminhada e deve sim funcionar, exatamente por ter o perfil de um procedimento para as equipes dos bares. “Será como um treinamento de rotina, periódico, obrigatório, necessário para evitar os casos de violência. Não significa que a violência vai acontecer, mas é preciso saber agir da melhor forma”, afirma.

Moraes acredita ainda que a regra vem para tornar generalizada uma atitude que alguns estabelecimentos já realizam. “Alguns bares já aplicam iniciativas como essas, são detalhes no cardápio que facilitam o pedido de ajuda, equipes mais comprometidas com a segurança. Mas a criação do protocolo é o grande diferencial”.

Protocolar o método para proteger as mulheres 

Os protocolos contra assédio em estabelecimentos não são uma novidade, mas tomaram visibilidade depois que os funcionários da casa noturna onde foi denunciado estupro pelo jogador Daniel Alves seguiram todas as medidas com cautela e ajudaram em dar um melhor desfecho para a vítima no momento do ocorrido.

Na avaliação da pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marlise Matos, medidas como essa ajudam a reverter comportamentos naturalizados que negligenciam ou culpam a mulher. “O procedimento é interessante porque ele responsabiliza os estabelecimentos pelo cuidado. Onde a rotina é não acolher a denúncia, não escutar, julgar, é louvável que tenhamos iniciativas que entendem de fato que as vítimas são as mulheres e que é preciso preservá-las”, afirma.

Para Matos, a referência ao protocolo de Barcelona no decreto da Prefeitura está nítido. “O protocolo de Barcelona, de 2018, contrapõe a banalização da violência, implica que o atendimento dessas mulheres tenha um caminho. Há responsabilização, há resposta ao acontecimento com urgência. E, a proposta da Prefeitura, é uma referência clara”, reforça.

De fato, de acordo com a secretária Rosilene Rocha, a forma como a denúncia de assédio foi tratada na boate em Barcelona chamou a atenção da Prefeitura. “O caso deu visibilidade a importância de uma cidade ter um protocolo contra o assédio. Nós acompanhamos como os funcionários deram clareza para a mulher tomar as medidas necessárias”, diz.

No momento, o comitê vai priorizar a conscientização e treinamento das equipes, para depois, passar a calcular as advertências aos estabelecimentos. “É um decreto, o comitê irá sim criar medidas administrativas, advertências, mas, no momento, o foco é garantir a adesão dos bares e restaurantes”, afirma.

Bar de BH é exemplo ao adotar medidas contra assédio 

No Berilo Cozinha & Drinks, na região da Savassi, em Belo Horizonte, a prática de acolher as mulheres já faz parte da rotina dos funcionários. Uma ideia que veio da sócia do estabelecimento, Cecília Ramirez, tornou o bar um local em que as mulheres se sentem seguras. Um código, divulgado por um cartaz no banheiro feminino, pode ser usado a qualquer momento para que a cliente receba ajuda e seja guiada, com segurança, até o carro ou até alguém de confiança.

“Criamos essa senha para que a vítima possa solicitar socorro, se estiver se sentindo ameaçada de alguma forma, sem que cause alguma reação imediata de quem a importuna”, conta Ramirez. No bar, os funcionários são orientados a proteger as mulheres, a chamar um carro de aplicativo, se necessário, e acompanhá-las até que estejam seguras.

Para a sócia, o decreto da Prefeitura é um avanço. “É uma satisfação ver o poder público tomar essa iniciativa, porque, até hoje, é alto os índices de feminicídio, de vítimas de assédio, de tantas agressões. Então, uma política de acolhimento faz a diferença”, comemora.

O que diz o Clube Chalezinho 

“O Clube Chalezinho lamenta o acontecido com a jovem Adriane de Mendonça e esclarece que procurou ampara-la desde que tomamos conhecimento do caso.

Nossa equipe é treinada para dar acolhimento total às vítimas de assédio e direcionar os casos à polícia para registro de ocorrência, o que pode ser constatado nas imagens 45 segundos após o fato.

Posteriormente, quando a cliente entrou em contato via telefone para solicitar o ressarcimento do seu ingresso, designamos uma responsável de nossa equipe para acompanhar o caso e fornecemos espontaneamente as imagens das câmeras de segurança para colaborar com as medidas pretendidas pela jovem. 

Desde 2019, temos uma campanha ostensiva contra essa prática, com cartazes espalhados por toda a casa buscando a conscientização dos clientes.

Entendemos que tal prática é endêmica em nossa sociedade e deve ser combatida com seriedade e rigor. Estamos à inteira disposição das autoridades para contribuir com a identificação e punição do agressor.”

Fonte: O Tempo

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