Brasil: um país em que a esperança é o último refúgio e nunca morre. Apesar disso, a fé na justiça se desmonta cotidianamente em um violento jogo. A vala fria da desesperança sempre nos aguarda, como um abismo que desconcerta e atrai.

Os eventos que mancharam de sangue as comunidades do Rio de Janeiro, deixando um rastro de mortos que choca e entorpece a alma, não são apenas estatísticas frias de um confronto. São chagas de uma falha profunda, sistêmica, que se repete dolorosamente em nosso tecido social. E o mais cruel é perceber que, em meio a essa tragédia, muitos, com a melhor das intenções, acabam por celebrar a barbárie.

Há uma falácia perigosa que se alastra, como erva daninha no terreno fértil da indignação. A ilusão de que operações policiais desastradas, mal planejadas e focadas unicamente em “subir o morro” para um embate direto, resolverão o intrincado problema da criminalidade. É a crença ingênua, porém devastadora, de que a violência estatal, exercida de forma bruta e desmedida, é a resposta definitiva.

Esse é o ponto onde a boa intenção se desvia do caminho, pavimentando a estrada para o inferno da chacina, do extermínio, da injustiça. As ruas clamam por segurança, os corações clamam por paz, mas a forma como buscamos essa paz define se a encontraremos ou se afundaremos ainda mais no caos e na lama sangrenta.

Não se trata de negar a necessidade da presença do Estado, nem de romantizar a criminalidade. Longe disso. O Estado precisa e deve estar presente em cada recanto do território brasileiro, especialmente nas comunidades mais excluídas, nas periferias esquecidas, nos bolsões de vulnerabilidade. A questão fundamental é: como o Estado chega? Quando a única face que se mostra é a do fuzil, a do Caveirão, a da bala perdida e da vida massacrada, o que se constrói não é segurança, mas sim um ciclo vicioso de dor, vingança e deslegitimação de qualquer autoridade. O Estado, ao chegar apenas com a violência, fecha os olhos para o problema maior, para a raiz do mal que aniquila a nossa sociedade.

É preciso ter a coragem de olhar para o espelho da realidade e questionar: onde está, de fato, a criminalidade que verdadeiramente desestabiliza o país, que corrompe as instituições e que tece a teia da impunidade? Não, ela não está predominantemente nas vielas estreitas das favelas, nos barracos humildes onde a vida pulsa com sacrifício e resistência. As lideranças do crime, do crime organizado em sua essência mais perversa, não se escondem nos becos da miséria, nas biqueiras sujas. Elas habitam os bairros nobres, os grandes centros financeiros das cidades, os suntuosos palácios políticos, as altas esferas do poder econômico.

Os exemplos são eloquentes e se erguem como monumentos à nossa cegueira coletiva. Lembremos da maior operação de apreensão de fuzis já realizada no Rio de Janeiro. Aconteceu onde? No asfalto, no Condomínio Vivendas da Barra. Foi uma operação de inteligência, meticulosamente planejada, que resultou na apreensão de um arsenal sem que uma única vida fosse perdida, sem que um único tiro fosse disparado. Contrastemos isso com a brutalidade das chacinas nas comunidades, onde dezenas de vidas são perdidas em embates sangrentos, gerando luto e revolta, mas raramente desmantelando as verdadeiras estruturas do crime.

Ou ainda, os quarenta bilhões de reais das organizações criminosas que foram descobertos e bloqueados em operações focadas em seguir o dinheiro, em desmantelar a lavagem e a corrupção em alta escala. Não na favela, mas nos centros financeiros, nos esconderijos de luxo que abrigam os verdadeiros operadores do crime.
Percebam que uma série de leis e políticas são, por vezes, elaboradas não para combater o crime, mas para acobertá-lo, para expandir o sentimento de impunidade, para proteger interesses escusos. É nesse emaranhado de interesses que a verdadeira batalha contra o crime deve ser travada, com inteligência, estratégia e um compromisso inabalável com a ética e a legalidade.

A matemática da barbárie é cruel e implacável. Alguém realmente acredita que a criminalidade será enfrentada, de forma eficaz e duradoura, com extermínios em massa? A tragédia dos cento e vinte e cinco que, miseravelmente, faleceram ontem, já tem seu triste epílogo. Essas vidas, por mais que lamentemos sua perda, já foram substituídas pelas engrenagens frias e implacáveis do tráfico de drogas e do crime organizado. A lógica perversa do crime não para. Ela se realimenta da miséria, da exclusão, da ausência do Estado. Para cada vida destruída na favela, há outras cem esperando a oportunidade para serem cooptadas por um sistema que se aproveita da desesperança.

O verdadeiro combate à criminalidade passa por desatar esses complexos nós. É preciso seguir o dinheiro, as rotas do armamento, as redes de corrupção que permitem a existência e a expansão dessas organizações criminosas. É preciso uma inteligência de Estado robusta, despolitizada, apartidária, que trabalhe em conjunto, articulando as forças de segurança de todos os entes federativos — Estados e governo federal — em uma estratégia coesa e de longo prazo.

Mas, acima de tudo, o Estado precisa chegar nas comunidades com a sua face mais humana, mais essencial: a da Cidadania. É lá, onde a ausência do Estado é mais sentida, que ele precisa se manifestar com serviços públicos de qualidade. Educação que abre portas para o futuro, saúde que cuida da vida, saneamento básico que garante dignidade, coleta de lixo e zeladoria que demonstram respeito, cultura que enriquece a alma, oportunidades de trabalho que resgatam a esperança.

É nesse solo fértil de direitos que se planta a verdadeira segurança. É lá que se constrói uma barreira intransponível contra a coação do crime.

Os Direitos Humanos não são um obstáculo ao combate à criminalidade; são a bússola que nos impede de nós perdermos na escuridão da violência. Direitos Humanos de verdade significam que a vida importa, que a justiça importa, que a dignidade de cada indivíduo importa, independentemente de sua origem, cor ou condição social. Significa que o Estado tem o dever de proteger seus cidadãos, e não de exterminá-los em operações desastradas.

É tempo de olharmos para onde o crime realmente está e levarmos, sim, condições de vida para a favela, para as comunidades. Condições de vida, não condições de morte. Condições de florescer, não de definhar. A criminalidade será enfrentada não com extermínio, mas com a construção incansável de uma sociedade mais justa, mais igualitária e, sobretudo, mais humana. O grito que ecoa das comunidades não é um pedido de trégua, mas um clamor por uma vida digna, por um Estado presente, protetor e que garanta a todos o direito fundamental de existir.

 

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