Pepe Mujica é visto como um alienígena nos primeiros minutos de “Os Sonhos de Pepe”, cartaz a partir desta quinta-feira nos cinemas. E é isso não é uma ofensa ou deboche. É apenas a constatação de que sua passagem pela Casa Suárez y Reyes, o palacete presidencial uruguaio, entre 2010 e 2015, foi como um evento raro a ser estudado e discutido. Aliás, dizer que Mujica residiu na mansão do Prado é força de expressão. Ele raramente colocou os pés lá, preferindo continuar morando em sua chácara, em Ryncón del Cerro, na zona rural de Montevidéu, onde até hoje planta flores, fonte de seu principal sustento. É uma característica sui generis para quem foi o homem mais poderoso do vizinho sul-americano.

Esta é a razão para o diretor Pablo Trobo buscar esse olhar que parece saído de um filme de ficção-científica. Nos movimentos iniciais, a música surge climática, cheia de elementos de suspense. A fotografia exibe cores meio saturadas. E a câmera na mão percorre a chácara até encontrar Mujica de cabeça baixa, aparentemente concentrado em um livro.

Ele pergunta a Trobo se “podemos parar um pouco”. O diretor indaga se a luz o incomoda, devido ao visível desconforto do ex-presidente. Como um ser alienígena que acaba de pousar na Terra, Mujica não quer luz, permanecendo em seu próprio mundo. Em outro sentido, o desinteresse pela luminosidade é representativo de alguém que não anseia pelo status que o poder lhe confere.

Em seguida, o documentário traz uma fala em off do político uruguaio, no papel de filósofo existencialista, elucubrando sobre alguns temas caros à ficção distopia: “Qual é o sentido da vida?”. Ou melhor: “A vida tem sentido?”. Trobo estabelece esse incômodo, desviando-se de fazer um tradicional documentário que reverencia as qualidades incontestáveis de Mujica.

“Os Sonhos de Pepe” oferece o bastante para entender a missão do ex-militante dos Tupamaros que passou parte da vida atrás das grades e sofrendo tortura, ao deixar claro suas motivações. A frase mais lapidar, replicada em posts nas redes sociais, sublinha que, “se você não tiver uma causa, a sociedade vai te enquadrar, e você vai passar a vida pagando contas”.

A partir de determinado momento, o biografado surge como um bólido incansável, distribuindo a torto e direito pensamentos e avisos sobre uma sociedade calcada no consumo e o desastre ambiental que está prestes a acontecer. A música que o acompanha nessas andanças é “O Trenzinho do Caipira”, do compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, que imita os sons de uma locomotiva.

Trobo insere infinitas imagens de meios de locomoção, especialmente o metrô, como símbolo de um mundo cada vez mais célere e apático. Com sua fala pausada e poderosa, Mujica faz o contraponto, apontando o dedo para uma humanidade que “está cavando a própria cova”. Para um homem de 89 anos, que passou por um câncer no esôfago, a vivacidade dele é contagiosa.

“Os Sonhos de Pepe” se torna um pouco repetitivo quando se deixa levar pelas falas proferidas em viagens e encontros. Às vezes sentimos falta daquelas imagens do início, ao vermos Mujica em sua casa, nos intrigando por seus costumes e por ser um político “extraterrestre”, raro presidente desapegado dos rituais do cargo.
Seus sonhos podem não passar de mera utopia, apesar de ter mostrado avanços progressistas significantes quando dirigente do Uruguai, como a liberação da venda da maconha para combater o tráfico, mas valem pela intenção de sempre mostrar que precisamos, antes de mais nada, tomar as rédeas de nossas vidas, e não deixar que os bancos e as multinacionais façam isso por nós.

 

Fonte: O Tempo

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