O zagueiro Hideraldo Luís Bellini fez história dentro e fora de campo. Capitão da seleção brasileira na Copa de 1958, ele teve contribuições significativas também na ciência. Após sua morte, em 2014, a família decidiu doar o cérebro para estudos sobre a relação entre doenças neurodegenerativas com as constantes pancadas na cabeça que os atletas levam ao longo da vida. E os últimos resultados e avanços em relação a estudos e pesquisas, que mostraram uma relação direta entre os traumas e o impacto na saúde, já começam a mudar os rumos do futebol.

A International Football Association Board (IFAB, sigla em inglês), órgão que estabelece as regras do futebol, enviou  às confederações nacionais uma recomendação para que jogadores de até 12 anos das categorias de base sejam proibidos de cabecear a bola durante treinos e partidas.  No Reino Unido, a orientação já foi colocada em prática e a tendência será remover os cabeceios de todas as partidas até o sub-12 na temporada 2023/24.

A Fifa, entidade máxima do futebol, também já instituiu em 2022 uma nova regra permitindo uma substituição extra no campo, além das cinco alterações habituais, quando há suspeita de concussão cerebral. A regra passou a vigorar na Copa do Mundo do Catar, vencida pela Argentina, e segue em vigor desde então. Tudo para preservar a saúde dos atletas.

“A frequência que o atleta vai tendo essas concussões, essas pancadas na cabeça, que vai determinar o grau, o impacto das lesões. Já é via de regra no esporte que um jogador que leva uma pancada na cabeça deve receber atendimento médico imediato e não mais voltar para campo. Se perder a consciência, ficar desorientado, ele só pode retornar as atividades após passar por exames e ficar uma semana assintomático”, explica Fabiano Boteiro Siqueira, fisioterapeuta, professor do UNIBH e membro da Sociedade Nacional de Fisioterapia Esportiva e da Atividade Física (Sonafe).

Além disso, ele reforça que melhorias no treinamento e nos acessórios utilizados pelos atletas ao longo das décadas também podem contribuir para reduzir a incidência de lesões e, por consequência, de doenças neurológicas. E não só no futebol, mas também em outros esportes de possível impacto na cabeça, como rúgbi, hóquei e o boxe. “Os equipamentos de proteção são fundamentais para se preservar o atleta”, reforça.

O ex-pugilista, peso-pesado, José Adílson Rodrigues dos Santos, o Maguila, foi diagnosticado com Mal de Alzheimer em 2010. Mas, após passar por problemas sérios que o levaram a ser internado em 2014, teve um novo diagnóstico: Encefalopatia Traumática Crônica (ETC). A doença é incurável, degenerativa e causada por repetidos traumas na cabeça, como pancadas, socos e até mesmo cabeceios. O também ex-pugilista Éder Jofre, campeão mundial de peso-galo, em 1960, e do peso-pena, em 1973, teve o mesmo diagnóstico de Maguila. Ambos começaram a ter sintomas da doença após os 50 anos.

Ainda assim, apesar de a maioria desses diagnósticos aparecer já em idade avançada, a  neurologista infantil Larissa Santos explica que a preocupação em preservar o cérebro deve vir desde os primeiros passos.

“Uma criança que sofre uma concussão tem mais chance de desenvolver distúrbio de aprendizado permanente e até depressão. Se ela continua sofrendo essas microlesões no cérebro, ao longo da vida, isso vai ter uma consequência lá na frente”, alerta.

CÉREBRO X CONCUSSÃO

Larissa Santos explica que a concussão ocorre quando há um prejuízo na função cerebral, impactando a memória e a orientação após um trauma na cabeça. Entre os sintomas mais comuns estão perda de consciência, amnésia, confusão mental, crise epilética, deficit focal e desequilibro.

“Esses sintomas aparecem geralmente assim que acontece a concussão, ou no pronto-socorro. Mas é preciso reforçar que as pessoas que tomam uma pancada forte na cabeça precisam ser vigiadas de alguma maneira. Nem todo trauma leve é causado por uma concussão, mas a concussão é causada por um trauma acompanhado por uma desfunção neurológica transitória, como a perda de consciência”, reforça.

ESTUDOS PUBLICADOSNos últimos anos, aumentaram as preocupações crescentes sobre a exposição ao traumatismo craniano no futebol e se isso pode levar ao aumento do risco de doença neurodegenerativa no futuro. Os resultados mais recentes de pesquisas sobre o tema mostraram que é preciso, sim, se preocupar em preservar o cérebro a todo custo. No final da vida, o ex-jogador Bellini, campeão com o Brasil do Mundial de 1958, desenvolveu sintomas típicos de demência, como esquecimentos frequentes e dificuldades de raciocínio. Fatores que levaram a família a decidir por contribuir com a ciência em um estudo.

“O Bellini sofria com mal de Alzheimer há 18 anos, mas teve uma vida bastante regular e social durante 10 anos. Há oito anos, realmente, é que ele começou a apresentar visivelmente os sintomas. Nós tivemos a sorte de ter dois grandes cirurgiões neurologistas acompanhando o caso dele e o doutor Ricardo Nitrini. Então nessa fase final, ele (doutor Ricardo) me perguntou se doaríamos o cérebro do Bellini para um estudo, visto que muitos atletas de vários esportes que levam impacto no cérebro vem apresentando esse mal ou alguma doença similar”, disse a esposa de então jogador, Giselda Bellini, quando decidiu doar o cérebro do ex-jogador para estudos na época.

Ela contou que aceitou fazer a doação para ajudar futuras gerações. “É claro que se é para ajudar os nossos netos e bisnetos, evitar essa doença, se for realmente constatado que esses impactos provocam uma lesão, a falta de memória pelo Alzheimer, então concordamos em doar”.

Os resultados da pesquisa, liderada pelo doutor Ricardo Nitrini (USP), foram publicados em 2016 pela National Library of Medicine, e mostraram que Bellini não teve Alzheimer, mas a Encefalopatia Traumática Crônica (ETC), também conhecida popularmente como “demência do pugilista”.

EM 2023

Neste ano, a Lancet, principal revista científica do mundo, publicou um novo estudo em que mostra que a probabilidade de jogador de futebol ter Alzheimer ou demência é maior do que as outras pessoas. A pesquisa analisou os laudos médicos de mais de 6.000 atletas da primeira divisão do Campeonato Sueco entre 1924 e 2019. Os pesquisadores compararam a taxa de pessoas afetadas por problemas cerebrais degenerativos com a de uma amostra de 56 mil suecos.

Os goleiros não foram analisados, visto que não levam tantas ‘trombadas’ na cabeça quanto os jogadores de linha. Antes deste estudo, outra publicação de pesquisa feita na Escócia, em 2019, concluiu que jogadores de futebol são mais propensos a sofrer com algum problema neurodegenerativo ao fim da carreira – o estudo foi feito com jogadores escoceses nascidos entre 1900 e 1976. A relação foi descoberta com a morte de Nobby Stiles, volante campeão do mundo com a Inglaterra em 1966, que sofria de demência.

Fonte: O Tempo Sports

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