De esteio da estabilidade monetária a vilão dos preços, o frango passou do céu ao inferno no período de 27 anos e cinco meses que separa dois Brasis. O país que abraçava o Plano Real em julho de 1994, como saída da espiral inflacionária, exibia a ave como símbolo. A nação que volta a se assustar com o custo de vida assiste, hoje, a cenas dramáticas de consumidores em busca de restos de carnes desprezadas pelos açougues, como pés de galinha, diante do aperto do orçamento e a queda da renda.

Em valor corrigido, o R$ 1 que comprava um quilo de frango em julho de 1994 vale, agora, R$ 7,02, com base na evolução do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A variação medida até outubro, período mais recente da pesquisa do indicador da inflação oficial, é de 602,04%, apurada entre 1º de julho de 1994 e 30 de outubro.

Com a quantia atualizada, o consumidor não compra mais o quilo de frango resfriado nos açougues de Belo Horizonte. O produto é oferecido entre R$ 9,15 e R$ 14,95, de acordo com levantamento feito em 23 de novembro pelo site de pesquisas de preços Mercado Mineiro. Na região Centro-Sul da cidade, seria também necessário completar o dinheiro até mesmo para adquirir o quilo de pés de galinha, cotado a R$ 13,99 pelo site especializado.

A alta dos preços da proteína que deixou de ser alternativa à carne cara na mesa dos brasileiros acumula 20,08% nos últimos 12 meses até outubro na Grande BH, quase o dobro da inflação de 10,46% apurada na capital e entorno. A remarcação é ainda maior do custo no varejo do frango em pedaços, que atingiu 32,28%, pela pesquisa do IBGE. Os reajustes continuam a ganhar fôlego, medios de janeiro a outubro último, tendo alcançado 11,13% e 26,07%, respectivamente, enquanto o IPCA foi de 7,77%.

Não só o frango, como as carnes em geral se tornaram vilãs da inflação após a condição atípica imposta pelos efeitos da COVID-19 na economia, observa o economista André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do Insituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas. Encareceram as rações para trato animal, o milho e a soja, além da forte desvalorização do real frente ao dólar. Esse conjunto de fatores elevou o custo de produção de aves e ovos.

Outro vetor de elevação de preços apontado por Braz são as exportações brasileiras de carnes, que afetaram a oferta interna do produto. “O frango também é exportado e isso explica o desabatescimento no mercado doméstico. O volume de exportação tem a ver com desvalorização do real. Quanto mais barata for a nossa moeda, mais o país se parece com uma vitrine em promoção. Todos querem comprar aqui e ajudam a sustentar os preços em alta”, destaca.

Dígitos

Feliciano Abreu, economista e gestor dos sites Mercado Mineiro e comOferta.com lembra que consiste tendência o aumento de preços das carnes no fim do ano, devido à tradição das festas cristãs de Natal e Ano Novo. Levantamento de preços médios de carnes em 39 estabelecimentos na Região Metropolitana de BH, realizado pelos sites entre 3 e 5 de novembro, apontou ligeira queda, mas o preço final continua alto e há variações que ultrapassam três dígitos percentuais. “O preço do próprio frango foi o que menos caiu”, diz Feliciano.

O consumidor tem dificuldade de perceber o recuo verificado em novembro. O preço médio do quilo da ave resfriada  diminuiu de R$ 11,64 para R$ 11,32, queda 2,79%.

O quilo do pé de galinha, que antes da pandemia era descartado pelos açougues ou vendido por R$ 0,50 na Grande BH, agora, custa até R$ 13,99. “Inflação sempre existiu em alimentos, mas o frango teve um caminho aberto às exportações. Sempre houve movimentação de preço, mas nesse período todos os custos aumentaram. Não é só o frango, mas em toda a cadeia produtiva, houve alta de combustível, transporte, energia elétrica.”

De outro lado, Abreu enfatiza a perda do poder aquisitivo da população. “O dinheiro valia muito mais, e a desvalorização do real redireciona as vendas priorizando os mercados externos. Isso também interfere.”

Hábitos

Com base na Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do IBGE, que serve de base para a composição do IPCA, a variação do preço do frango inteiro acumulada entre julho de 1994 e outubro último foi de 497,56%, no Brasil e 275,05% na área metropolitana da capital mineira. O preço do produto em pedaços variou 442,2% no território nacional, e 514,03% na Grande BH no período.

O coordenador de Pesquisa da Supervisão de Levantamento de Preços do IBGE em Minas Gerais, Venancio Otavio Araujo da Mata, explica que até 2005 o instituto apurava os preços do frango de forma genérica. Somente no ano seguinte, foram incluídos em separado os itens “frango inteiro” e “frango em pedaços”. 

“Periodicamente, o instituto avalia os hábitos de consumo da população para adequar os ítens a serem incluídos ou retirados da pesquisa, conforme o peso de cada um deles no orçamento familiar”, explica Venancio da Mata.

No histórico de levantamento de preços a partir de 1995, os maiores reajustes acumulados para o frango inteiro na Grande BH foram registrados, de forma crescente, nos últimos quatro anos, de 176,7% em 2018, 194,49% em 2019 e 237,49 no ano passado.

Da popularidade à sobra no balcão


A corrida dos preços das carnes tem exigido esforço redobrado das famílias para não eliminar a proteína à mesa, mas nem o frango escapou da compra escassa. Na casa do pedreiro Henrique dos Santos Linhares, de 25 anos, a ave deixou de ser consumidana proporção do passado. Resignado, ele, que vive com mais seis pessoas, reconhece  não ser possível colocar a carne branca à mesa como costumava fazer. “Não dá pra consumir nem frango com frequência. O preço vem aumentando a cada vez em que vou ao açougue. Outras carnes, nem pensar. Churrasquinho no final de semana acabou. Nem com asa de frango a gente faz.”

Valério Alexandre da Costa, eletricista de 56 anos, tem hábito de consumir asa e sobre de frango, “às vezes um frango assado ou inteiro para assar em casa”, conta. Contudo, ele diz que está difícil manter o consumo, embora os cortes da carne ainda sejam adquiridos a preços mais baixos do que os de boi e porco. São quatro pessoas na casa dele e os gastos com a proteína pesam muito no orçamento. “O pé de frango, que era jogado fora, chega a custar R$ 8 o quilo”, reclama.

Pizzaiolo com experiência também em casa especializada na venda de frango assado, Letícia Luz Brito, de 26, se assusta ao ver um frango assado oferecido a R$ 36. “As pessas chegam atraídas pela assadeira com aquelas peças bonitas e cheirosas, mas desistem ao ver o preço. O almoço, de vez em quando, tem coxa e sobrecoxa, mas o preço está um absurdo”, reclama.

Promoção

Há 62 anos, o pai do comerciante Constantino Gabriel Araujo Jr., de 57, trocava terras gaúchas por Belo Horizonte e levou “uma novidade” para o Bairro Carlos Prates, região Noroeste da capital. Junto da mulher, o pai de Constantino abriu as portas da Cantina Minas Goiás, uma das pioneiras na venda de frango assado na região. “Meu pai trouxe a frangueira que guardo aqui até hoje como recordação”, conta com orgulho.

A casa que tinha o frango assado como carro-chefe precisou se diversificar. “Naquela época, frango era um prato nobre, e depois se tornou mais acessível. Agora, está de volta à nobreza”, observa Constantino. Ele estima queda no consumo em torno de 50%. “Tivemos que começar a inovar, servindo o frango no prato feito e em pedaços. Preparo pés de galinha, que é sobra do frango comprado inteiro. A gente dá para pessoas carentes mas usamos também como promoção. A pessoa toma cerveja e ganha dois pés de galinha como tira-gosto.”

Fonte: Estado de Minas

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