Poucos setores exemplificam questões contemporâneas de forma tão clara quanto o telemarketing. Nele, encontram-se discussões sobre direitos trabalhistas, diversidade no ambiente de trabalho, a ameaça da inteligência artificial aos empregos e o crescimento desenfreado dos golpes no Brasil. Em um momento de tantas transformações, os empregos no setor diminuem e uma dúvida paira no mercado: o fim dos call centers está chegando?
Para alguns analistas, sim. A operação de telemarketing é uma das 15 ocupações com tendência de declínio mais rápido entre 2025 e 2030, segundo um relatório do Fórum Econômico Mundial (WEF) em parceria com a Fundação Dom Cabral (FDC) publicado neste ano. Mas, se há um fim no horizonte, ele ainda não chegou. Hoje, os telesserviços empregam cerca de 1,4 milhão de pessoas no Brasil, de acordo com a Associação Brasileira de Telesserviços (ABT) e com a Federação Nacional de Call Center, Instalação e Manutenção de Infraestrutura de Redes de Telecomunicações e de Informática (Feninfra). A ABT também calcula que o setor fatura R$ 43 bilhões anuais, com uma perspectiva conservadora de 1% de crescimento por ano.
Há um declínio, contudo. A Feninfra estima que foram perdidos cerca de 70 mil empregos só no telemarketing entre 2022 e 2024 por consequência direta da adoção do prefixo 0303, utilizado para identificar contatos ativos, quando o operador liga para o consumidor para oferecer determinado produto ou serviço. A previsão inicial do setor era uma derrocada muito maior, com perda de até meio milhão de empregos, o que foi contido pelo aquecimento da economia, com baixa inédita do desemprego no país, e a permissão para ligações de cobrança não utilizarem o prefixo, na perspectiva da Feninfra.
Para a professora da Unicamp e pesquisadora do mercado Selma Venco, o telemarketing vive um ponto de inflexão similar ao que ele ocasionou nas agências bancárias entre os anos 90 e 2000, quando teve um boom no Brasil e causou uma brusca redução dos empregos nesses estabelecimentos. “Agora, o próprio telemarketing passa por esse processo. A realidade virtual já é concreta para a redução do emprego. Como sempre ocorre com mudanças tecnológicas, há um movimento de resistência, mas elas nos atropelam, e o capitalismo vai tentando resolver da sua forma, com menos pessoas, menos custos e mais desigualdade social”, reflete a especialista.
A coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações de Minas Gerais (Sinttel), Lourdes Pires, lista uma série de fatores que impactaram diretamente os postos de trabalho em telecomunicações, além da aplicação do 0303: “a recuperação judicial da Oi, a desoneração da folha de pagamento e a mão de obra que tem sido substituída pela inteligência artificial em vários aspectos. Com isso, a redução foi notória”, enumera. Segundo ela, há casos de empresas que tinham mais de 5.000 funcionários e reduziram o contingente para pouco mais de 2.000.
Na ponta mais fraca de toda essa turbulência, estão os trabalhadores. É a experiência deles que o humorista Fernando Cunha tenta refletir em seu perfil do Instagram @telesincera. Ele utiliza sua própria vivência no telemarketing para satirizar o dia a dia dos call centers, que ele deixou ao ser demitido na pandemia. “Quando cheguei ao call center, foi assustador. Muita gente acha que é só pegar o telefone, mas não é. Há palavras que você não pode falar e um setor que investiga tudo o que você disser ao cliente. Você não está falando só com um cliente, mas com toda a empresa e por ela. É uma cobrança gigante, tem muito abuso de autoridade e chantagem emocional. Mas eu via oportunidades em cada espaço e subi de cargo”, conta o influenciador.
“Falo dessa dor na minha página. Os vídeos são compartilhados e as supervisoras e os gerentes também veem. Os operadores podem utilizar minhas falas para talvez comunicar à empresa que não estão satisfeitos. É uma comédia meio política”, conclui.
Fonte: Gabriel Rodrigues e Raíssa Pedrosa-O Tempo