Nos últimos anos, avanços na oncologia têm demonstrado que compreender o câncer exige mais do que observar apenas o tumor. Fatores como o estado nutricional e a composição corporal dos pacientes têm se mostrado cada vez mais relevantes para o prognóstico e a resposta aos tratamentos — especialmente no caso do câncer de cabeça e pescoço.
Esse cenário ganhou novas evidências com a publicação de dois estudos recentes apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), conduzidos por pesquisadores do Centro de Inovação Teranóstica em Câncer (CancerThera), sediado no Centro de Hematologia e Hemoterapia da Universidade Estadual de Campinas (Hemocentro-Unicamp). Os trabalhos foram orientados pelo pesquisador José Barreto Campello Carvalheira e publicados em revistas internacionais especializadas em nutrição e oncologia clínica.
As pesquisas investigaram a relação entre adiposidade (depósito de gordura), muscularidade (quantidade de massa muscular) e sobrevida em pacientes com câncer de cabeça e pescoço — um dos tipos de tumor mais complexos de manejar. Esse grupo de cânceres pode se desenvolver em diversas regiões, como boca, língua, faringe, laringe, seios da face e glândulas salivares. Os tumores da cavidade oral (que incluem lábios, cavidade oral, glândulas salivares e orofaringe) representam o oitavo tipo de câncer mais comum no Brasil, afetando majoritariamente homens acima dos 40 anos. Entre as mulheres, esse tipo de câncer não está entre os dez mais frequentes, segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
“O paciente com câncer de cabeça e pescoço é um dos que mais ficam desnutridos. Isso acontece porque, além das questões relacionadas ao tumor e ao tratamento em si, a doença afeta diretamente regiões ligadas à mastigação e deglutição, o que dificulta a ingestão de alimentos. Naturalmente, esses pacientes têm uma perda de peso maior, uma desnutrição mais acentuada e, por isso, são considerados de alto risco nutricional”, explica a nutricionista Maria Carolina Santos Mendes, coorientadora dos estudos e pesquisadora associada ao CancerThera.
Embora o papel da obesidade como fator de risco para o desenvolvimento de diversos tipos de câncer já seja bem estabelecido na literatura científica, a influência do tecido adiposo após o diagnóstico da doença ainda é pouco explorada. “No câncer existe algo chamado ‘paradoxo da obesidade’. Sabemos que a obesidade aumenta o risco de desenvolvimento de vários tipos de tumor, mas, em algumas situações, o tecido adiposo pode atuar como fator protetor quando o paciente já tem a doença instalada. Foi isso que observamos também no câncer de cabeça e pescoço”, detalha Mendes.
O primeiro estudo do grupo foi publicado em março deste ano na revista Frontiers in Nutrition e analisou 132 pacientes com câncer de cabeça e pescoço localmente avançado. Os resultados mostraram que pacientes com níveis mais altos de adiposidade apresentaram risco reduzido de mortalidade em comparação aos com baixos índices de gordura. Indivíduos com mais tecido adiposo tiveram mediana de sobrevida global de 27,9 meses, contra 13,9 meses entre os que apresentavam baixos índices — o dobro de tempo de vida.
“Esse dado chama a atenção ao confirmar que pacientes com maior quantidade de gordura na região da C3 tinham sobrevida maior. Isso nos faz pensar na importância da terapia nutricional precoce. Se eu identifico logo no diagnóstico que o paciente tem baixa reserva de gordura, posso intervir de forma mais específica e talvez aumentar sua sobrevida”, explica Mendes.
Além disso, os achados mostraram que a preservação da massa muscular também se revelou um fator protetor independente para a sobrevida global. Os autores constataram que pacientes com maior quantidade de massa muscular sobreviveram, em média, 22,9 meses, enquanto aqueles com baixa musculatura viveram 8,6 meses.
“Esses resultados demonstram claramente o impacto da composição corporal nesse grupo e a importância de avaliar também o tecido adiposo. Eles abrem novas perguntas para a ciência: qual o impacto do metabolismo do tecido adiposo no prognóstico desses pacientes? Será que conseguimos reverter esse quadro e aumentar a sobrevida dessas pessoas com suporte nutricional precoce? É esse tipo de investigação que norteia o foco do nosso laboratório”, acrescenta a nutricionista.
O segundo estudo da equipe foi publicado em agosto na revista Clinical Nutrition ESPEN e analisou outro grupo de 101 pacientes com câncer de cabeça e pescoço metastático ou recorrente, atendidos no Hospital de Clínicas da Unicamp. Os resultados reforçam a relevância da composição corporal, especialmente da muscularidade, para os desfechos clínicos.
“Todos os indivíduos com baixa massa muscular morreram em até 24 meses de seguimento. Em contrapartida, alguns com maior muscularidade ainda estavam vivos após 40 meses. Isso reforça como ela pode ser determinante para a sobrevida”, ressalta Mendes.
Juntos, os achados dos dois estudos chamam atenção para a necessidade de olhar o paciente como um todo e incorporar a avaliação da composição corporal no cuidado clínico. Segundo a pesquisadora, a análise pode ser feita por meio de tomografias, que já são realizadas rotineiramente, o que torna o método acessível para grande parte dos pacientes oncológicos.
“A maioria dos estudos olha apenas para a musculatura. O diferencial das nossas pesquisas foi incluir também o tecido adiposo, e encontramos resultados muito relevantes. Entretanto, não é apenas a quantidade de gordura que importa, mas também seu metabolismo e como ele pode trazer informações valiosas durante o tratamento”, afirma Mendes.
Na avaliação da pesquisadora, a contribuição desses estudos é significativa por abrir espaço para novas estratégias terapêuticas que considerem a interação entre músculo, gordura e câncer. “A ideia é reforçar o que já sabemos: acompanhar a nutrição é essencial. Mas, muitas vezes, isso acaba sendo negligenciado na prática. Queremos mostrar que a avaliação da composição corporal deve ser incorporada de forma rotineira, porque pode fazer diferença no tempo e na qualidade de vida desses pacientes”, conclui Mendes.
Com informações do Hoje em Dia










