Entre a Gávea e São Conrado, na Zona Sul do Rio, está a maior favela do Brasil: a Rocinha. Com vista para o mar, a comunidade abriga cerca de 72 mil moradores, segundo o Censo 2022 do IBGE, e tornou-se um dos principais redutos do Comando Vermelho (CV). Uma reportagem do Globo revela que, após oito anos de disputas com a facção rival Amigos dos Amigos (ADA), o CV consolidou sua posição, transformando o morro em uma verdadeira fortaleza do crime — com um arsenal estimado em 1.500 fuzis, sete vezes mais do que um batalhão operacional da Polícia Militar costuma ter.
O poder de fogo do tráfico foi registrado recentemente por um drone da PM, que flagrou a fuga de aproximadamente 400 criminosos armados com fuzis em uma área de mata durante uma operação. Além de abrigar traficantes locais, a Rocinha também serve como refúgio para bandidos de outros estados, incluindo estelionatários e assaltantes. O fenômeno reflete a nova lógica do crime organizado: a busca por territórios bem armados e com pouca presença estatal.
Tráfico por atacado
Segundo o delegado Pedro Cassundé, da Polícia Civil, o tráfico de armas se sofisticou com o tempo, deixando o modelo de varejo e passando a operar no atacado.
“Aqueles chefes tradicionais, que numa configuração clássica atuavam importando apenas armas para abastecer seu próprio território, acabaram. Hoje, devido ao capital acumulado, eles passaram a atuar também como atacadistas. Eles aproveitam o contato estabelecido com os fornecedores para adquirir, em larga escala, armas e drogas e revender esse material a qualquer criminoso disposto a pagar o valor cobrado. Assim, ganham o status de ‘matutos’”.
A mudança foi evidenciada em investigações com quebra de sigilos. Em uma conversa interceptada, o traficante Eduardo Fernandes de Oliveira, o Eduardo 2D, negocia armas e munições com outro criminoso. Ele oferece 500 caixas de projétil calibre 7,62 por R$ 75 mil; um fuzil AR-556 por R$ 51 mil; e 48 caixas de munição por R$ 31,2 mil. A compra total ultrapassava R$ 300 mil.
Eduardo 2D é um dos líderes do Complexo do Alemão, outro bastião do CV, também protegido por grande quantidade de fuzis. Fhillip Gregório da Silva, conhecido como Professor, morto recentemente, era apontado como elo da facção com fornecedores no Paraguai, Peru, Bolívia e Colômbia. Com sua morte, a polícia agora mira Manoel Cinquine Pereira, o Paulista, como novo responsável pela logística internacional do grupo.
A promotora Letícia Emile, coordenadora do Gaeco do Ministério Público do Rio, destaca o caráter impessoal das transações armamentistas:
“Eles vendem para quem estiver disposto a pagar: tráfico, milícia, contravenção. Essas armas ilegais passam por vários bandidos e só deixam de ser usadas quando não funcionam mais. Afinal, um fuzil hoje tem altíssimo valor, e não apenas financeiro, mas também simbólico. Seu poder de intimidação, especialmente dentro de comunidades ou nas mãos de criminosos nas ruas, é imenso”.
Fuzil na mira
O nutricionista Thiago Monteiro Vieira, de 39 anos, conhece de perto o impacto psicológico da violência armada. Ele foi assaltado na porta de casa, no condomínio Alphaville, na Barra da Tijuca, quando ia buscar o filho de 2 anos. Por meses, sofreu crises de pânico e ansiedade.
“Um carro me cortou e parou na minha frente. Um homem desceu já com um fuzil em punho, mandando que eu saísse do veículo. Em seguida, outro homem apareceu com uma pistola. Levaram meu carro, a carteira, o celular, tudo que eu tinha naquele momento”, relatou.
Relatório da Coordenadoria de Fiscalização de Armas e Explosivos da Polícia Civil revela que, dos 725 fuzis apreendidos em 2023 — média de dois por dia —, a maioria é formada por cópias não autorizadas de modelos dos EUA, os chamados “copyfakes”. Apesar de ilegais, têm o mesmo poder de destruição. Muitos são montados com peças de armas antigas, de airsoft ou de origem clandestina, e chegam a custar metade de um fuzil importado, que varia entre R$ 50 mil e R$ 70 mil.
Entre os fuzis originais apreendidos, 60% eram de origem estadunidense. Outros vieram da República Tcheca, Brasil, Alemanha e Romênia, com entrada predominante via Paraguai e trânsito por rodovias até Rio e São Paulo.
Fronteiras abertas
O número exato de armas ilegais em circulação é desconhecido, mas o mercado legal também cresceu. Dados da Polícia Federal mostram mais de 115 mil armas registradas no estado. Em 2023, havia mais armas licenciadas por cidadãos (40.864) do que por órgãos públicos, como polícias (40.331). E isso sem contar os registros de CACs — colecionadores, atiradores e caçadores — que tiveram acesso facilitado a armas de grosso calibre durante o governo Bolsonaro.
Um levantamento do pesquisador Roberto Uchôa, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que, entre maio de 2019 e dezembro de 2022, os CACs compraram 30.895 fuzis no Brasil.
“O quadro de origem das armas mudou em 2019 com o governo Bolsonaro, porque foi a primeira vez que pessoas da sociedade civil puderam comprar armas como essas no mercado interno. Antes, o acesso era possível apenas por meio de mercado estrangeiro ou desvio de arsenais públicos. Com as brechas na fiscalização, passou a ser possível obter essas armas sem o risco de apreensão em rodovias ou aeroportos”, explica Uchôa.
Além disso, as regras sobre munição também geraram alerta. Bruno Langeani, consultor do Instituto Sou da Paz, aponta que as mudanças legais aumentaram o volume de munição disponível para civis:
“De um dia para o outro, entre 150 mil e 200 mil CPFs passaram a poder comprar grandes quantidades de munição não rastreada, inclusive de fuzil. Uma pessoa que tivesse uma arma dessas podia adquirir até mil projéteis por ano. Se tivesse 30 fuzis, poderia comprar 30 mil balas por ano. Isso gerou um volume altíssimo de venda de munição no Brasil, e até hoje não se vê uma estratégia clara para lidar com essa questão”.
Um decreto do governo federal, em 2023, restringiu o acesso a armas de uso restrito, mas manteve brechas. CACs ainda podem ter até quatro armas desse tipo e adquirir equipamentos para recarregar munições. Em 2023, o Exército concedeu 1.280 autorizações para compra desses equipamentos e outras 40 para entidades de tiro esportivo.
No mesmo ano, 55 armas registradas por CACs foram desviadas no Estado do Rio — 32 por roubo, 15 por furto e oito por extravio. Um retrato de como a fronteira entre o mercado legal e o arsenal do crime segue porosa e mal fiscalizada.
Fonte: Agenda do Poder