A Copa do Mundo de futebol feminino de 2023 está se desenhando como a maior da história da modalidade. O primeiro jogo da seleção brasileira, por exemplo, na segunda-feira (24), teve um pico histórico de audiência para o horário na TV. Fora da tela e nos gramados de Belo Horizonte, as meninas também se tornam cada vez mais protagonistas no futebol. Elas movimentam o campo e a economia do esporte e contam com escolas exclusivas, empresárias dedicadas a gerenciar carreiras de mulheres e clubes profissionais de olho em contratar jovens talentos.

O futebol feminino ainda está longe do patamar masculino. Mesmo após quadruplicar o prêmio da Copa para US$ 150 milhões desde a última edição, a Fifa ainda paga menos da metade a elas do que aos pares homens, que receberam US$ 440 milhões no campeonato de 2022. Ingressar na carreira de jogadora de futebol pode não levar a um pote de ouro como no caso de alguns dos maiores nomes da categoria masculina. Mas, hoje, é encarado como possibilidade de carreira para meninas de uma forma até poucas décadas atrás impensável, avaliam mulheres que trabalham no ramo.

Seja por hobby ou para arriscar uma chance em seleções profissionais, meninas buscam aulas de futebol exclusivas para elas em Belo Horizonte, demanda que as escolas concordam que tende a aumentar com os holofotes na Copa. E tanta vontade de estar no gramado se traduz em sucesso de negócios. É o caso da escola de futebol Lobas Academy, a única da cidade com uma equipe integralmente composta por mulheres. Fundada em 2019 na capital mineira, neste mês ela ganhou sua primeira unidade em São Paulo, parte do plano da fundadora, Lúdy Rodrigues, de transformar a empresa em uma franquia nacional.

 

Meninas começam a treinar futebol desde cedo

Rodrigues, de 35 anos, foi jogadora de futebol profissional até os 19. Depois, transformou-se em empreendedora, mas sempre fiel ao esporte.

Eu queria criar um ambiente seguro para jogar futebol onde as alunas se sentissem empoderadas, fortes, um espaço feminino em que elas pudessem visualizar que podem aprender com mulheres. Porque o futebol pode ser ensinado por mulheres, sim. Não é só futebol. Às vezes, as meninas chegam e não querem nem se colocar para jogo, se expor muito. Nosso treinamento ensina que quando se coloca para jogo não é só no futebol, mas na vida”, diz ela.

Hoje, seis outras mulheres trabalham na Lobas, que reúne cerca de cem alunas. Sua turma infantil dá os primeiros passos, com aproximadamente 15 matriculadas que treinam duas vezes por semana. A maioria da turma infantil é de adolescentes de 12.

Metade são meninas que estavam em outra escola de futebol e jogavam com meninos, mas chegaram em uma idade em que eles param de tocar para elas, não as chamam para jogar, são um pouco mais brutos. A outra metade é de meninas que nunca tiveram contato com futebol antes”, descreve.

Neste ano, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) regulamentou competições de futebol amadoras com times mistos — isto é, com homens e mulheres na mesma equipe. A ideia é democratizar o acesso ao esporte, justifica a instituição. Pode haver percalços no caminho, entretanto.

Ester, de 9 anos, é uma das meninas que passaram por uma escola de futebol mista antes de encontrar um time 100% feminino. “Eu quero muito ser goleira”, conta, “e tenho que treinar para ser melhor”. A mãe, a professora de ensino infantil Eliane Sabino, 46, reflete que a paixão da filha pelo futebol vem de família, atleticana há gerações, e incentiva o sonho de Ester.

Ela ficou um ano na outra escolinha e era a única menina. Ela demonstrou interesse em ficar no gol, mas o professor não deixava. Questionei o porquê e ele disse que os meninos chutam mais forte, tinham receio de a bola bater nela, essas coisas. Isso começou a me incomodar. Eu e meu esposo decidimos ir atrás de quem deixasse ela jogar. Ela precisava dessa oportunidade e o professor não deu. Aonde estariam as goleiras que temos hoje no mundo todo sem isso?”.

O investimento no esporte desde a infância é uma peça-chave para a criação de atletas de ponta, explica a coordenadora do futebol feminino do América, as Spartanas, Luiza Parreiras. “Essa formação é essencial. Ainda estamos em um momento em que existe muita falha técnica, tática e de desenvolvimento físico devido ao desenvolvimento tardio. Há mulheres que são atletas de alto rendimento, mas que começaram a jogar depois dos 14, 15 anos, ou jogavam em campo de várzea com meninos, quando eram mais novas, porque não tinham turma para elas”.

Hoje, em 2023, consigo dizer que é possível ter uma carreira como jogadora”, acrescenta.

Notícias sobre grandes negociações de jogadoras entre clubes são mais raras do que no futebol masculino, contudo também atingem cifras significativas. A maior negociação de que se tem registro é a da jogadora britânica Keira Walsh, por quem o Barcelona desembolsou cerca de R$ 2,2 milhões no último ano.

Os milhões não são uma realidade para todas. Empresária de talentos femininos, Sílvia Mara representa cerca de 70 meninas e mulheres e conta que algumas atletas de base recebem somente uma ajuda de custo dos clubes, de R$ 600 a R$ 800, e sua maior cliente recebe R$ 8.000. “É um abismo enorme em relação aos maiores salários dos homens”, sublinha.

 

Escola de futebol prepara meninas para conquistarem bolsa nos EUA

A maior parte das matriculadas na Uai Soccer Academy não joga por hobby ou para entrar em um time brasileiro, e sim para conquistar uma bolsa de estudos em alguma universidade dos EUA, que concede o benefício a atletas de alta performance. Em agosto, às vésperas do início do ano letivo norte-americano, nove alunas da escola estão saindo do Brasil para viver esse sonho, segundo o fundador da empresa, Eduardo Serafini.

Essa possibilidade depende um pouco do nível socioeconômico das meninas, porque elas precisam ter inglês e arcar com outros custos, como passagem e visto, mesmo com bolsa integral”, pontua. Algumas das alunas da Uai, fundada em 2010, continuam na carreira esportiva depois de anos, enquanto outras aproveitam a chance de estudar no exterior com uma bolsa para seguir outros caminhos profissionais.

Serafini treina no máximo 20 alunas por vez em cada equipe e, recentemente, abriu uma turma para meninas menores de 13 anos sem foco na mudança de país, somente na diversão. “Hoje, tenho fila de espera das mais novas. A Copa de 2019 aumentou o interesse, e a deste ano deu uma revigorada no tema”, conclui.

 

Projeto ensina futebol de graça para meninas no Alto Vera Cruz

Dedicar-se ao futebol profissional exige tempo e, muitas vezes, dinheiro. O Aspra/Projeto Social Futebol É Vida tenta contornar a dificuldade financeira de meninas que sonham com uma carreira em campo e oferece aulas gratuitas no Alto Vera Cruz, na região Leste de Belo Horizonte. Ele é uma parceria com a Associação dos Praças Policiais e Bombeiros Militares de Minas Gerais (Aspra/PMBM).

A iniciativa foi criada em 2009 pelo educador físico e servidor público Wesley Teixeira e sua esposa. Atualmente, ensina 70 meninas — 30 de até 13 anos no futsal, e 40 de até 20 anos no gramado. “Elas ganham até o uniforme. Quando começamos o projeto, não encontramos uma escolinha voltada para a base feminina em BH, só colégios particulares que tinham uma estrutura muito boa para futsal”, relembra Wesley. “Devagar, a valorização das atletas está crescendo”.

 

Meninas que jogam futebol representam reparação por décadas de preconceito

Depois de matricular a filha Ester na aula de futebol, a professora Eliane, do início desta reportagem, também decidiu se dar uma chance e se matriculou em uma turma de futebol para viver a experiência que não teve na infância. É uma realidade comum de muitas alunas adultas, concorda Lúdy Rodrigues, da Lobas Academy — ela mesma relata que viveu um pouco disso.“Meus pais nunca me proibiram de jogar, mas também nunca facilitaram minha vida me levando e buscando, por exemplo. Foi uma jornada muito solitária nesse ponto”.

Ela se emociona ao analisar como essa realidade tem mudado — ainda que lentamente.

A maioria das pessoas que levam as meninas para a escola são homens. Pais, avós, tios. É um movimento incrível. Antes, os pais achavam que as meninas não jogavam futebol. Agora, visualizam que elas podem ser jogadoras. Tem pai que treina com a filha em casa”, comemora.

A coordenadora do futebol feminino do América, Luiza Parreiras, rememora que, na adolescência, recebeu uma oportunidade que um menino, provavelmente, jamais recusaria.

Aos 15 anos, tive a oferta de uma bolsa para jogar futebol nos EUA, mas meus pais perguntaram ‘jogar futebol para quê? Você tem que estudar’. Imagino e vejo que, hoje, o contexto seria bem diferente. As pessoas estão se especializando e o futebol feminino é profissão”, finaliza.

 

Fonte: O Tempo

 

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